Era Neto. Filho de sem-terra beneficiado pela regularização fundiária em Itapuranga, no interior de Goiás, estudei em escola rural até a quarta série. Dona Alzira Maria de Moura, que alfabetizou meu pai e meus sete tios havia décadas, deu aula para minha irmã e para mim nos cinco anos inicias. Ela nos viu nascer. Todos na sala se conheciam.
Ninguém nunca me chamou pelo primeiro nome nem sequer em entrega de boletim em fim de semestre. Até mesmo porque é comum tratar de Júnior quem tem a assinatura do pai e de Neto, como no meu caso, quem honrosamente herdou o nome do avô.
Descobri que era João somente na quinta série, já aos 11 anos, quando fui estudar na cidade. Levei falta na chamada vários dias por causa da ausência de didática da maioria dos professores. Até que a mestra Edna Duarte, de língua portuguesa, notou que eu não sabia que meu nome era João por falta de hábito de ser chamado de tal.
Lembro bem que eu era o número dez na chamada. Embasada na psicopedagogia, imagino, Edna, que, posterior e merecidamente, assumiu a pró-reitoria de Graduação da Universidade Estadual de Goiás, não chamava ninguém pelo numeral. Para ela, todos tinham nome, mesmo que não fosse o da certidão de nascimento que constava no diário.
Um dia, ao terminar a chamada e perceber que todo mundo respondeu presença após a citação do nome, ela sacou que só havia sobrado João Nogueira de Camargo Neto e que eu era o único que não tinha respondido. Com muito respeito e cuidado, perguntou como eu me chamava. Respondi, claro, que era Neto. Ninguém entendeu. Somente ela. Sem censura e em silêncio.
A partir de então, passou a me chamar pelo último nome, mesmo quando, na ordem alfabética, ele ficava entre o número 9, de Israel, e 11, de Karla. Na minha vez, para não me constranger, sorrindo zelosamente, dizia Neto. Hoje, sem constrangimento retardado, eu sei que a letra ene não sucede imediatamente a i. Era a glória. Eu não ficava feliz por entender que alguém me compreendia e respeitava, avaliação que só consigo fazer hoje, crescidinho. Minha felicidade estava em ser familiarmente reconhecido por uma autoridade escolar.
É evidente que eu sempre soube escrever meu nome completo, mas João era formal demais, imponente, frio, distante. Não combinava com a candura de uma criança de cabelo de árvore. João era o nome do meu avô, que nasceu em 24 de junho, dia de São João. Eu sou de 22 de novembro, dia de Santa Cecília. Nele cabia bem. Não haveria melhor. Ainda assim, minha avó só o chamava de Joãozinho. Meus pais, avós, amigos, vizinhos, tios e até os colegas encapetados sempre me chamaram de Neto.
Mesmo com as limitações de uma escola rural, me empenhei para ser um aluno esforçado e recuperar o prejuízo proporcionado pela educação precária. A classe tinha o mesmo tamanho de uma urbana, mas era uma só, com todas as séries juntas e apenas uma lousa. No entanto, eram cinco turmas diferentes.
Cada fila simbolizava uma série. Com o giz, a única professora dividia o quadro. A cada risco, tarefa para uma fileira. Era até divertido. Enquanto a quarta série copiava a matéria, a terceira havia terminado, a segunda estava conversando, a primeira aprontando e a pré-alfabetização chorando. Não, a professora não estava se descabelando. Nunca vi dona Alzira Maria de Moura nervosa.
Independente da idade, pai e mãe acompanhavam filho somente no início do ano letivo ou em dia de reunião. Sempre fui sem eles, desde os seis anos. Para chegar à Escola Municipal Córrego da Onça, Tatiane, minha irmã, e eu levantávamos bem cedo, pois tínhamos de transpor o riacho, enfrentar enchente, já que, se chovesse, a pinguela rodava, correr de vaca recém-parida, fugir de cachorro bravo, despistar cobra venenosa, atravessar rodovia e até prestar primeiros socorros, episódio que nunca vou esquecer.
Um colega passou pela cerca de arame bem no instante que relampejou. Ele tentou ignorar a lenda rural que sabiamente rezava que a língua enrolaria se isso ocorresse. Dito e feito. Desenrolar, porém, seria fácil. Uma criança bem mais corajosa que eu enfiou a mão na boca do amigo e deixou a língua na posição original, como se nada tivesse acontecido. Não lembro quem foi, mas, passado o tempo, o heroi do grupo de infância certamente deve ser bombeiro, enfermeiro ou paramédico.
Ele sobreviveu. Tati, demais colegas e eu também. Hoje a maioria deles são agricultores familiares, inclusive a minha irmã, alguns cursaram licenciatura e são professores, tem um que é guarda municipal e os outros, 20 anos depois, naturalmente não reconheço se rever. Sei, contudo, que, se a limitação da educação de base tiver pautado a vida profissional, os valores familiares e princípios basilares compartilhados na sala de aula de cinco séries unidas imperaram. Ao menos desde o meu pai, dona Alzira Maria de Moura nunca falhou.
João Camargo Neto é jornalista