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João Camargo Neto

Meu nome não era João

Ninguém nunca me chamava pelo primeiro nome | 29.07.11 - 19:39

Era Neto. Filho de sem-terra beneficiado pela regularização fundiária em Itapuranga, no interior de Goiás, estudei em escola rural até a quarta série. Dona Alzira Maria de Moura, que alfabetizou meu pai e meus sete tios havia décadas, deu aula para minha irmã e para mim nos cinco anos inicias. Ela nos viu nascer. Todos na sala se conheciam.

Ninguém nunca me chamou pelo primeiro nome nem sequer em entrega de boletim em fim de semestre. Até mesmo porque é comum tratar de Júnior quem tem a assinatura do pai e de Neto, como no meu caso, quem honrosamente herdou o nome do avô.

Descobri que era João somente na quinta série, já aos 11 anos, quando fui estudar na cidade. Levei falta na chamada vários dias por causa da ausência de didática da maioria dos professores. Até que a mestra Edna Duarte, de língua portuguesa, notou que eu não sabia que meu nome era João por falta de hábito de ser chamado de tal.

Lembro bem que eu era o número dez na chamada. Embasada na psicopedagogia, imagino, Edna, que, posterior e merecidamente, assumiu a pró-reitoria de Graduação da Universidade Estadual de Goiás, não chamava ninguém pelo numeral. Para ela, todos tinham nome, mesmo que não fosse o da certidão de nascimento que constava no diário.

Um dia, ao terminar a chamada e perceber que todo mundo respondeu presença após a citação do nome, ela sacou que só havia sobrado João Nogueira de Camargo Neto e que eu era o único que não tinha respondido. Com muito respeito e cuidado, perguntou como eu me chamava. Respondi, claro, que era Neto. Ninguém entendeu. Somente ela. Sem censura e em silêncio.

A partir de então, passou a me chamar pelo último nome, mesmo quando, na ordem alfabética, ele ficava entre o número 9, de Israel, e 11, de Karla. Na minha vez, para não me constranger, sorrindo zelosamente, dizia Neto. Hoje, sem constrangimento retardado, eu sei que a letra ene não sucede imediatamente a i. Era a glória. Eu não ficava feliz por entender que alguém me compreendia e respeitava, avaliação que só consigo fazer hoje, crescidinho. Minha felicidade estava em ser familiarmente reconhecido por uma autoridade escolar.

É evidente que eu sempre soube escrever meu nome completo, mas João era formal demais, imponente, frio, distante. Não combinava com a candura de uma criança de cabelo de árvore. João era o nome do meu avô, que nasceu em 24 de junho, dia de São João. Eu sou de 22 de novembro, dia de Santa Cecília. Nele cabia bem. Não haveria melhor. Ainda assim, minha avó só o chamava de Joãozinho. Meus pais, avós, amigos, vizinhos, tios e até os colegas encapetados sempre me chamaram de Neto.

Mesmo com as limitações de uma escola rural, me empenhei para ser um aluno esforçado e recuperar o prejuízo proporcionado pela educação precária. A classe tinha o mesmo tamanho de uma urbana, mas era uma só, com todas as séries juntas e apenas uma lousa. No entanto, eram cinco turmas diferentes.

Cada fila simbolizava uma série. Com o giz, a única professora dividia o quadro. A cada risco, tarefa para uma fileira. Era até divertido. Enquanto a quarta série copiava a matéria, a terceira havia terminado, a segunda estava conversando, a primeira aprontando e a pré-alfabetização chorando. Não, a professora não estava se descabelando. Nunca vi dona Alzira Maria de Moura nervosa.

Independente da idade, pai e mãe acompanhavam filho somente no início do ano letivo ou em dia de reunião. Sempre fui sem eles, desde os seis anos. Para chegar à Escola Municipal Córrego da Onça, Tatiane, minha irmã, e eu levantávamos bem cedo, pois tínhamos de transpor o riacho, enfrentar enchente, já que, se chovesse, a pinguela rodava, correr de vaca recém-parida, fugir de cachorro bravo, despistar cobra venenosa, atravessar rodovia e até prestar primeiros socorros, episódio que nunca vou esquecer.

Um colega passou pela cerca de arame bem no instante que relampejou. Ele tentou ignorar a lenda rural que sabiamente rezava que a língua enrolaria se isso ocorresse. Dito e feito. Desenrolar, porém, seria fácil. Uma criança bem mais corajosa que eu enfiou a mão na boca do amigo e deixou a língua na posição original, como se nada tivesse acontecido. Não lembro quem foi, mas, passado o tempo, o heroi do grupo de infância certamente deve ser bombeiro, enfermeiro ou paramédico.

Ele sobreviveu. Tati, demais colegas e eu também. Hoje a maioria deles são agricultores familiares, inclusive a minha irmã, alguns cursaram licenciatura e são professores, tem um que é guarda municipal e os outros, 20 anos depois, naturalmente não reconheço se rever. Sei, contudo, que, se a limitação da educação de base tiver pautado a vida profissional, os valores familiares e princípios basilares compartilhados na sala de aula de cinco séries unidas imperaram. Ao menos desde o meu pai, dona Alzira Maria de Moura nunca falhou.

João Camargo Neto é jornalista


Comentários

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  • 02.08.2011 01:21 Thais

    Fantástico!

  • 01.08.2011 15:38 Sérgio Paiva

    Neto, seu texto está ótimo, me emocionei. Aprendi a ler com a Dona Maria, professora que morava ao lado da casa dos meus pais. De tanto pular o muro e chamar atenção, ela resolveu que já estava na hora de dar um jeito no moleque que gostava desenhar na parede. É uma das minhas lembranças mais antigas e fortes. Surpreendi minha mãe com meus novos conhecimentos numa ida a padaria, sem mais nem menos lí o big palavrão que estava escrito em um muro, articulando bem o BU ... e finalizando bem o resto daquela bobagem trissílaba. Dona Alice, minha mãe entrou em desespero, mas pode dizer a todo mundo que eu estava praticamente alfabetizado. Na mesma semana ganhei meu primeiro livro.

  • 01.08.2011 08:45 Ana Claudia

    Alzira Maria de Moura, o que de mais belo ja conheci na minha vida. Uma heroina! Minha mãe!

  • 31.07.2011 09:01 Márcia Abreu

    João, linda a sua história! E olha a coincidência: assim como você Siron Franco também descobriu o verdadeiro nome - Gessiron - na quinta série e na escola. Porém na antiga e encantadora Vila Boa a professora dele não teve a mesma paciência e sabedoria que a sua. Deu-lhe um tapa na cara quando, durante a chamada, chamou Gessiron três vezes e ele não respondeu. Ao chegar em casa, Siron foi questionar à mãe porque tinha sido o último a saber o seu nome.

  • 31.07.2011 00:24 Aline Leonardo

    João, se outra pessoa me contasse isso eu não acreditaria. Linda história!

  • 30.07.2011 15:40 Patricia

    Devia escrever um livro, querido João!

  • 30.07.2011 00:26 bia

    Amei. pessoas como você e dona Alzira me fazem ter fé no Brasil. beijos

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