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Nádia Junqueira

Nascida e criada no Jardim Novo Mundo

Minha mediocridade foi atacada | 01.09.11 - 10:44 Nascida e criada no Jardim Novo Mundo Dalai, o lhasa apso que, após fugir de casa, foi parar em uma boca de fumo (Foto: Aline Mil)


Minha mãe nunca gostou de cachorro. Tivemos uns três que ela mal deixava ficar na área. Só no quintal. Até que há quatro anos ela redescobriu a maternidade depois de três filhos criados. Veio o Dalai. Uma bolinha branca de pelo, Lhasa-Apso, que ganhou o coração dela e de toda família, claro. E com razão. Uma manha e educação em pessoa. Cachorro, digo. Senta para pedir comida, para passear, implorar colo. E é companheiro. Não esqueço quando minha mãe ficou com dengue. Dalai adoeceu junto. Ficou sete dias convalescido aos pés da cama dela. Por essa e por outras, recebe todos os mimos.   

Aí você imagina: meu irmão saiu de casa em junho, em julho minha irmã, e estamos eu e Dalai dividindo amor de dois adultos carentes. Até que numa bela manhã de sexta, saio atrasada, ressaqueada da festa de lançamento da Redação, e o Dalai aproveitou a brecha do portão se abrindo e fugiu sem eu ver. Geralmente, ele volta, mas esse dia ele não apareceu. Ao meio-dia minha mãe me liga aos prantos: roubaram o Dalai. Colocou carro de som na rua, passou de sala em sala da escola do bairro onde é diretora pedindo ajuda das crianças, procurou esquina por esquina. Toda a vizinhança já sabia que tinha um cachorrinho branco perdido.

Vivo no Jardim Novo Mundo desde que nasci. Meu pai comprou um lote e construiu nossa casa há quase 30 anos. Com todas notícias de tiros e drogas, sempre vivi na contramão do que aparecia no jornal. Roubaram uma boneca e uma furadeira há mais de 25 anos e um notebook há quatro porque quando saímos deixamos a porta aberta. E nada mais. Brinquei na rua toda a infância, temos amizade com a vizinhança, estamos perto de tudo que precisamos e gostamos demais de nossa casa: não tinha do que reclamar.

Mas o Dalai, nesse dia, nos fez mostrar que vivemos numa bolha. De costas, literalmente, para o que acontece no bairro. Minha mãe deu uma de Poirot e seguindo algumas pistas, descobriu que Dalai estava numa boca de fumo, há menos de 500 metros de casa. Um lugar que nunca soube existir. Por pouco ele não foi trocado em pedras de crack. Uma dependente da droga, bem magra, catadora de papel foi quem contou para minha mãe com quem Dalai estava. A moça perguntou se seria recompensada se ele fosse encontrado. Minha mãe disse que sim. “Mãe, agora que a gente tem dinheiro, vamos comprar um pastel e um suquinho?”, disse a menininha à mãe.

Quando minha mãe me contou isso, ficamos refletindo: no banho semanal do Dalai, que custa cinco vezes mais que o desejo da criança. As bolachas recheadas que ele come e os filés mignons e pizzas que a gente divide com ele. Era tudo muito medíocre perante a realidade de quem vive catando material reciclável, dependente de crack e tem uma filha que, só por muita sorte, não vai escapar de um futuro infeliz. Ela era doce e falava: “mãe, olha como eu tô linda”. Tinha acabado de tomar banho, mas a mãe mal reparava. 

De noite, fui com minha mãe novamente atrás do suposto ladrão do Dalai e finalmente conseguimos resgatar o nosso cachorrinho. Estávamos muito felizes, mas a mãe dependente e a filha não saiam de nossa cabeça. Pensamos que a única saída era tirar a menina de lá. Pensamos em adotá-la ou ajudá-la de alguma forma. Aquela história toda tinha algum recado para nos dar. Sem saber o que fazer, minha mãe acabou parando num supermercado e fez uma compra do mês para elas. E comprou um pastel e um suquinho. O Dalai continua com seus mimos. A menininha, provavelmente, sem o pastel. E eu não tenho nenhuma bonita conclusão para dar para vocês. Mas de alguma forma eu queria dizer que minha mediocridade foi atacada. E não consigo mais ignorar o que mora ao lado.   

Nádia Junqueira é jornalista


Comentários

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  • 26.09.2011 18:01 LINDALVA MORAIS DA SILVA

    não sou jornalista e nem vivo no Brasil mas obrigado pela sua linda matéria tento entender que em Portugal um ser humano por ser cigano é trato como lixo embora quem queira ver há um ser humano como sonhos e problemas mas são invisíveis ,mesmo sem ter vícios ainda acho estranho vivendo aqui já algum tempo.um abraço. lINDALVA

  • 09.09.2011 12:50 Fátima

    Eu conheço o Dalai e todas as pessoas que o cercam, mas não conheço a "menininha e a sua mãe", e com certeza nem aqueles que como elas vivem ao meu lado e eu sem sequer penso nisso. É... seu artigo tambem atacou a mediocridade de todos nós...

  • 06.09.2011 10:20 odessa

    Muito bom o seu artigo Nadia, parabens!

  • 06.09.2011 07:36 Francisco Arruda

    Parabéns pelo belo texto.

  • 06.09.2011 00:51 JOÃO BORGES

    Nádia Junqueira, belíssimo texto. As redes sociais, a correria da vida pela sobrevivência nos deixam robotizados. É preciso fazer esta viagem para o nosso interior e refletir sobre o próximo (o nosso irmão). E fiquei feliz que tenha encontrado o Dalai. Em casa temos três cachorros e sete gatos. Abraços.

  • 05.09.2011 11:36 Nádia Junqueira

    É bem isso, Wender. Saio de casa para procurar meu cachorro e levo tapa na cara. Obrigada a tod@s pelos comentários e por compartilharem comigo esse sentimento de mediocridade. Realmente, Andreia, que a gente olhe mais para os lados...

  • 05.09.2011 08:37 Pablo Kossa

    Que belo texto! Toca o coração. Lindo mesmo, Nádia...

  • 04.09.2011 21:47 wender de assis

    É dificil saber o que doi mais nesta sua historia. se a perda do dalai, se a pena da garotinha que nao tem nenhuma perspectiva de futuro decente, ou se esta dolorosa sensacao de incapacidade de mudar esta realidade que cada dia é mais gritante. Voce sai para encontrar seu toto, e leva um tapa na cara...

  • 02.09.2011 11:36 Andreia de Paula

    A conclusão "bonita" que posso chegar com seu artigo é que precisamos olhar para o lado. Isso já está sendo um grande passo para você e para quem ler o artigo. Olhar para os lados. Muito obrigada por me ajudar a mudar um pouco o meu foco.

  • 01.09.2011 14:47 Renata Rocha

    Compartilho com vc o sentimento de mediocridade...

  • 01.09.2011 12:13 Jerônimo Venâncio

    Lindo, Nádia! Acho que se todos olhássemos um pouco mais para o que nos rodeia, o mundo seria bem mais bonito!

  • 01.09.2011 11:18 Fabricio Cavalcante @fabriciocava

    Tocante.

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