Goiânia - Imagino que não esteja claro a todos, deveria estar, e deveria ser facilmente perceptível, assim como deveriam também ser as considerações que seguirão: música tem presença quase constante na vida cotidiana, ocidental ao menos. À parte de eventos essencialmente musicais (shows, festivais de bandas, etc.), pois essa é a porção evidente da demanda por música, eventos humanos de diversas naturezas e propósitos estão quase invariavelmente acompanhados de música em plano de fundo. Essa é a porção não-evidente. Se não estivessem, o que acompanharia tais eventos, em vez de música, seria provavelmente algum tipo de estranhamento, algum tipo de silêncio alarmante, ou constrangedor, ou ruídos de gente se acomodando em assentos, conversando, tossindo, reclamando...
Observem celebrações de todos os tipos, de aberturas de congressos a festas de fim de semana. Observem o cinema, as trilhas sonoras que aprofundam o universo de personagens, de cenas, que ajudam a comunicar as intenções das imagens. Observem a televisão, todas as propagandas (o que seria delas sem os jingles?), os noticiários, suas aberturas, desfechos, a música dramática que acompanha interrupções na programação para informes de última hora e de grande interesse (sempre tragédias maiores do que as costumeiras).
Observem cerimônias religiosas. Observem campanhas políticas. Observem eventos esportivos. Observem eventos escolares... Tudo isso pede por música que, é claro, alguém compôs, alguém arranjou, tocou, gravou, registrou. E não se enganem: todo essa trabalho não foi feito pela mesma pessoa que estampa a capa da revista ou as colunas sociais. Esse(a) é a ponta do iceberg, a parte exposta, responsável por uma fração do trabalho. Abaixo da superfície é onde está o fundamento de toda essa música, é onde atua a maior parte dos responsáveis por produzir esse bem: os músicos-operários, que assim poderiam ser chamados caso realmente houvesse um universo profissional estruturado para o ofício.
Usar música para acompanhar atividades socialmente estabelecidas é uma prática secular, e embora não deva se tornar um hábito trazer à mesa a carta da tradição para substanciar ideias, pois ela serve para bem menos do que se costuma supor, para os fins desse argumento ela tem utilidade: música é um bem de alta demanda, o é há mais tempo do que se pode medir com precisão e não se podem encontrar facilmente indícios que indiquem que deixará de ser. Daí a pergunta: não é curioso que um bem em tamanha demanda seja produzido por sujeitos que desfrutam de tão pequeno prestígio social (exceto pelas mencionadas celebridades, que não são regra para coisa alguma, e sim a exceção) e, como consequência, tenham contatos de trabalho tão esdrúxulos (“eu ia pedir ao meu sobrinho, que também toca violão.
Na verdade, ele toca todos os instrumentos. Ele aprendeu sozinho. Mas ele só tem treze anos e não pode ficar acordado até tão tarde, ele tem escola. Então achei que era melhor pedir a você para tocar, já que você está com tempo, não é? Mas pode cobrar, eu insisto. Quanto é? Cem reais está bom?”), e, afinal, vidas financeiras tão incertas? Não soa paradoxal? Ou algum pai e mãe se alegra com os futuros prospectos profissionais de um filho ou filha que anuncia que em vez de alguma engenharia, optou por se dedicar à musica?
Música é trabalho, e gostar de realizá-lo não é pagamento suficiente. Não é culpa dos músicos que alguém odeie sua própria carreira profissional e sinta que seu salário é uma recompensa por sua infelicidade auto-imposta. Contudo, talvez nem seja o caso de argumentar pela via da justiça social, até porque a música provavelmente não é a área mais socialmente injustiçada no Brasil (a educação, talvez). Mas sim por um ponto de vista mais imediato e pragmático de análise: o ponto de vista do mercado. Pois como chegamos a tais circunstâncias, em que há grande demanda, há recursos e há quem produza o bem, mas não há recompensa proporcional aos músicos? Sob a perspectiva mercadológica, não deveria ser a música um bem dispendioso? Por que continuar a oferecer gratuitamente (ou quase isso) aquilo que temos e que tantos querem, quando outros bens de grande demanda nos custam tanto? Porque se conformar e aceitar que está tudo bem, que a figura do músico morto de fome é um belo e romântico papel?
Sugiro uma greve, da qual todos os músicos participem. Todos, profissionais ou não. Talvez aquele sobrinho possa ficar de fora. Greves não combinam com treze anos e talvez ele seja realmente o melhor para a sua festa de comemoração de vinte e cinco anos sem fimose. Uma greve por tempo indeterminado, pois o único benefício de se ter uma profissão confundida com um passatempo é que se não há direitos trabalhistas devidamente regulamentados, também não há deveres.
Proponho aos músicos, a partir desse momento, não mais expor suas composições, arranjos, performances etc, que retirem de circulação suas gravações tanto quanto possível, que sorrateiramente inutilizem discos e toca discos, computadores, celulares e players de formatos digitais de toda ordem até que um novo paradigma se estabeleça. Uma sociedade órfã de música deve passar a entender seu poder de mercado. Pode levar anos, décadas ou séculos e os músicos se tornarão detentores de um saber secreto, passado ritualisticamente de geração a geração, comercializado por dissidentes da greve no mercado negro musical.
Ou, pensando melhor, talvez isso seja um absurdo. Talvez. Mas fica a mensagem. Pense nisso e imagine com afinco uma sociedade sem música. Pensou? Agora responda: essas pessoas merecem mesmo todo esse descrédito?
*Pedro Bernardi é músico, bacharel em violão erudito (UFG), mestrando em música (UFG), além de guitarrista das bandas Dry e Mazombo