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Gismair Martins Teixeira

Machado de Assis e `Star Wars`

| 23.06.15 - 15:48
 
            O mundo cinematográfico perdeu neste mês de junho o ator britânico Christopher Lee. Morto num domingo, dia 7, conforme noticiou o jornal The Telegraph, Lee teve uma carreira longa, notabilizando-se para o grande público de gerações passadas por suas interpretações do Conde Drácula e para o da atual geração por interpretar personagens como Saruman, de blockbusters como Senhor dos Anéis, e Conde Dookan, da última trilogia de Star Wars, a saga escrita e dirigida por George Lucas. Este último personagem, icônico do universo geek, remete a uma curiosa e, a princípio, insuspeita correspondência intertextual que o vincula ao universo do escritor brasileiro Machado de Assis. De maneira mais específica, relaciona um recorte do etos bibliográfico machadiano ao universo – no caso, literal –, de Star Wars.

            Em sua expressão mais simples e dicionarizada, a intertextualidade é toda “relação entre dois ou mais textos”. No caso da relação Lucas-Machado de Assis, uma textualidade que apresenta uma matização de suportes, ou plataformas, expressa pela relação entre o livro e a tela de cinema. No auge do sucesso da primeira trilogia de Star Wars, consta que Steve Spielberg teria dito a George Lucas, acerca do arquétipo místico intitulado A Força, presente na narrativa fílmica, que este havia fundado uma nova religião. A adoração em torno da franquia que revolucionou o cinema sugere que em certa medida Spielberg tem razão. A Força é definida por um dos personagens principais da saga lucasiana como “um campo de energia criado por todas as coisas vivas: ela nos cerca, nos penetra; ela mantém a galáxia coesa".

            A Força se bifurca em dois lados, o positivo e o negativo. Nesta dualidade, atua sobre os indivíduos, principalmente os sacerdotes de ambas as polaridades: os jedis e os siths. Os primeiros são sacerdotes guerreiros do lado bom; os segundos, sacerdotes guerreiros do lado sombrio. Ambos utilizam uma arma denominada sabre de luz, estruturadas em raio laser, que remete ao imaginário da espada chamejante dada a um querubim para impedir que Adão e Eva tentassem voltar à força ao paraíso de que foram expulsos após a desobediência às ordens divinas. O personagem de Christopher Lee, sacerdote-guerreiro do mal, duela com um jovem sacerdote-guerreiro jedi, Anakin Skywalker, que posteriormente será seduzido pelo lado sombrio e se tornará Darth Vader, o mais famoso sith da obra de Lucas. No universo de Star Wars, a Força atua sobre os indivíduos, moldando os seus destinos.

            No romance concebido por Machado de Assis, Quincas Borba, há uma curiosa simetria com a energia mística de Star Wars. O filósofo Quincas Borba concebe uma teia energética onipresente que remete à Força lucasiana. Trata-se de Humanitas, a dinâmica que mobiliza a vida e culmina na sistematização do Humanitismo. Ao explicar o seu princípio para o amigo e enfermeiro Rubião, Borba exemplifica com a morte da própria avó o princípio norteador de Humanitas. A genitora de sua mãe fora atropelada por uma carruagem cujos cavalos se assustaram e saíram arrastando o carro a esmo, colhendo-a fatalmente.

            Tudo ocorreu devido ao fato de que o cocheiro estava com fome, pois almoçara pouco, e deixara a carruagem sem os devidos cuidados. A conclusão: Humanitas, que vivificava o cocheiro e se expressava através dele, tinha fome e queria saciá-la. Era seu desejo que tudo ocorresse daquela forma, para que pudesse suprimir sua fome. Assim como fora desejo da Força que o menino Anakin Skywalker fosse encontrado no planeta Tatooine para que pudesse cumprir o seu destino. Tudo o que acontece, segundo Quincas Borba, é para que Humanitas se satisfaça. Ao concluir sua lição, seu cachorro, também chamado Quincas Borba, olha para ele de forma afetuosa. O filósofo louco arremata a sua aula improvisada dizendo que não era seu cachorro quem o olhava de forma tão afável, mas sim Humanitas através dele.

            A diferença fundamental entre os dois contextos enformados pelos seus respectivos textos está na proverbial ironia machadiana. O Humanitismo nada mais seria do que uma crítica sutil aos diversos ismos que surgiram na segunda metade do século 19, numa espécie de apogeu do humanismo renascentista. Já em Star Wars, George Lucas se serve da ideia da Força como elemento coesivo de um amálgama mítico e místico pinçado às várias tradições da humanidade com a competente assessoria do mitólogo Joseph Campbell. Se George Lucas criou uma religião, como teria sugerido Spielberg, Machado de Assis cria um simulacro de filosofia, estando ambas conectadas por instigantes conexões apontadas por Bertrand Russel, um dos pais da lógica moderna no século 20, em seus escritos sobre a filosofia e a religião. A intertextualidade funciona, assim, como uma espécie de metafórico buraco de minhoca a interligar universos aparentemente inconectáveis, como são os de Machado de Assis e George Lucas, mesmo que a crítica especializada possa vir a torcer o nariz para semelhantes pontuações intertextuais.
 
Gismair Martins Teixeira, doutor em Letras e Linguística pela UFG, é professor do Centro de Estudos e Pesquisa da Ciranda da Arte, da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás.

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