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Wolney Unes

Desonestidade intelectual

Dilma lançou espécie de desafio: estocar vento | 12.10.15 - 11:02
Goiânia - Não quero falar sobre desonestidade política. Tampouco quero discutir ocultação e maquiagem de fatos para até depois das eleições. Essa prática é infelizmente antiga e comum, adotada por políticos de todos os matizes ideológicos. Quero falar sobre outro tipo de desonestidade.´
 
Sem dúvida é da natureza da política ocultar fatos, sofismar, elaborar silogismos, simular, iludir, elaborar ardis. Todas estratégias também comuns ao pôquer. Mas a ciência não é pôquer nem política, é o contrário de tudo isso. Ela só pode existir e só consegue avançar com transparência e compartilhamento de informação, formação de quadros, conceituação precisa e formulação clara de questões. E a pobreza do debate político hoje no Brasil está tentando contaminar até mesmo a ciência nesses seus pilares fundamentais. Falo da inflamada discussão sobre uma espécie de desafio lançado pela Presidência da República numa conferência da ONU, "estocar vento".
 
Qualquer discussão com base nas boas práticas da ciência deve partir da precisão das definições e das questões. Sobre o estoque de vento, portanto é isso que se deve fazer inicialmente. O que é vento portanto? É simplesmente ar em movimento. Estocar ar é fácil, já o fazemos. Nosso problema é portanto estocar o movimento. Mesmo no senso comum essa frase já evidencia um absurdo: estocar o movimento. Mas convém ver o que a tecnologia tem a dizer.
 
A fugacidade do movimento é um problema. Estocar coisas estáticas é tarefa simples: 1.000 litros d´água, 20 barris de petróleo, 50 quilos de arroz. Conseguimos até mesmo manter esse volume estocado ao longo do tempo. Já estocar algo dinâmico traz um limitador, pois o movimento se perde ao longo do tempo, como nos lembram as Leis da Termodinâmica. Mesmo assim, conseguimos armazenar energia cinética já há algum tempo. Convém lembrar dois marcos desse processo.
 
O último desenvolvimento desse tipo de tecnologia foram as maquininhas dos carros de Fórmula 1, famosas na temporada de 2009. O dispositivo Sistema de Recuperação de Energia Cinética (mais conhecido na sigla Kers, por seu nome em inglês) transforma justamente o excedente no movimento do automóvel em algum tipo de energia que possa ser guardada para aproveitamento futuro. Mas há também um dispositivo conhecido desde o Neolítico, o princípio do Volante de Inércia, aplicado na roda de fiar ou na roda dos oleiros. Não custa lembrar que esse tipo de equipamento permite o armazenamento por curtos períodos, poucos minutos apenas.
 
De volta ao chamamento presidencial, temos dois caminhos para "estocar o movimento do ar". Nossa primeira alternativa, o Kers, não consegue estocar o vento sem antes transformar sua energia em eletricidade. Já, pelo segundo caminho, nosso vento poderia colocar em movimento um volante de inércia, que em outro momento seria usado para devolver sua energia cinética acumulada. Pronto, estocamos "o vento".
 
Ou melhor, estocamos a energia cinética para aproveitamento futuro. Pelo menos parte dela. O problema é que nosso volante deveria girar portanto até o momento em que não mais haja vento. Como venta mais à noite que de dia, estamos falando de umas boas horas.
 
O sonho da energia contínua ocupa nossas mentes desde épocas medievais. O Moto Perpétuo seria a máquina ideal, uma vez colocada em movimento, teria a capacidade de executar esse mesmo movimento eternamente. Sem perda de energia. Para nossa tristeza, a primeira lei da termodinâmica mostra a impossibilidade física desse equipamento. Pelo menos nas condições físicas de nosso planeta, e muito provavelmente também em Marte.
 
Sonhar e imaginar equipamentos impossíveis faz parte do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Mas a Presidência da República reduz o debate científico à parolagem política no momento em que usa metáforas impróprias ("estocar vento"), no momento em que dá uma responsabilidade para a comunidade científica ("ainda não conseguimos") e no momento em que embaralha conceitos e questões de pesquisa ("como é que eu faria para estocar? Hoje usamos as linhas de transmissão"). 
 
A turma de apoiadores da Presidência vai atrás do chamamento e torce o debate: a internet se encheu subitamente de defensores e atacantes. Defensores citam exemplos que nada têm em comum com o problema proposto; atacantes seguem o caminho fácil de desqualificação do interlocutor. É uma turma que só parece querer transformar ciência em política. Acho perigoso: já vimos o que essa mistura pode provocar.
 

Wolney Unes
é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). 

Comentários

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  • 12.10.2015 22:39 José Ricardo

    Essa onda cientificista é ideológica desde a raiz. O que seria do marxismo sem o status de ciência social? O que teria sido do nazismo sem o disfarce de ciência genética? A psicanálise, nunca aceita pela comunidade científica como algo que vá muito além de uma técnica, no entanto, é comemorada como a vitória da ciência sobre o obscurantismo religioso. Ora, professor, o senhor é inteligente demais pra ficar com esse papo de "vamos contaminar a ciência com o discurso ideológico". A ciência trocou a amizade da religião pela submissão à ideologia. Teoria de gênero, aquecimento global, benefícios da maconha, tudo isso nos é enfiado goela abaixo pelos políticos com a ajuda da comunidade científica.

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