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Thiago Araújo

HIV não lembra a morte, mas a continuidade da vida

| 01.12.15 - 12:00
Thiago Araújo*
 
Goiânia - Lembro-me de Gia Carangi, Sandra Bréa, Reinaldo Arenas, Agenor de Miranda Araújo Neto, Caio F., minha professora do primário e Paulo, o meu amigo da adolescência. Pelo menos um dos cinco primeiros você deve conhecer de alguma forma. 
 
Gia foi a primeira supermodelo da história. Sandra, atriz e símbolo sexual brasileiro entre as décadas de 70 e 80. Reinaldo passou a vida combatendo o regime de Fidel Castro por meio da literatura – que de uma maneira acaba sempre nos salvando de pequenos e grandes abismos. Agenor, conhecido como Cazuza, foi um dos maiores letristas da terra onde cantam os sabiás.
 
Caio, jornalista e escritor assumidamente gay em plena ditadura militar, amigo privilegiado de Clarice Lispector, Adriana Calcanhoto e Ney Matogrosso, autor do cultuado "Morangos Mofados", passou a vida viajando e discorrendo diretamente aos corações sobre sexo, morte e solidão. 
Em comum e épocas diferentes, todos eles foram infectados pelo HIV, vírus causador da Aids. Todos, de certa forma, sentiram-se oprimidos e vítimas de um preconceito tão cruel que, por vezes, afogavam seus sagrados trabalhos artísticos e intelectuais. 
 
Gia contraiu o vírus em uma aplicação de heroína na veia. Vinda da Filadélfia, aos 17 anos ela era uma das modelos mais proeminentes de Nova Iorque. Cedo se viciou em cocaína, migrando em seguida para a heroína. Morreu aos 26 anos como indigente no Hahnemann University Hospital. Mais da modelo pode ser conferido no majestoso telefilme "Gia", no qual quem interpreta a modelo é Angelina Jolie.  
 
Bréa, a atriz da novela "O bem amado", da Globo, chocou o país ao relevar em 1993, durante uma coletiva de imprensa convocada por ela própria, que era vítima do vírus "moralista". Aos jornalistas ela afirmou que restava de vida à luta contra o preconceito. Morreu em 2000, quase que sozinha, com poucos amigos. Falava da Aids, contudo lamentava que, por causa da doença, não podia mais andar pelas ruas sem que as pessoas a encarassem de rabo de olho. Triste, então, se isolava.  
 
Já Reinaldo, marginal, passou alguns anos em Cuba preso sob tortura e se relacionou intimamente sem proteção com incontáveis homens. Persona non grata pela sexualidade, abandonou a ilha de Fidel e foi para Nova Iorque. Lá, depois de escrever a dolorosa autobiografia "Antes que anochezca", onde conta os exageros do regime comunista, e ser diagnosticado com o vírus, suicidou-se aos 47 anos com uma dose excessiva de álcool e drogas. Mesmo vítima da doença e de preconceito, antes de abraçar a morte deixou uma mensagem ao seu povo: "(…) ponho fim a minha vida. (…) Deixo como legado todos os meus terrores, mas também a esperança de que Cuba será livre... Eu já sou".
 
Boêmios, Cazuza e Caio viveram nos extremos. Da mesma geração, chegaram a se encontrar pelo caminho e tiveram um "namorico". "Ele me dedicou Só as mães são felizes no show aqui de SP? Fiquei num exibimento insuportável: foi o maior elogio de toda mi perra vida. Aí fui dar uns amassinhos nele, no final", contou Caio certa vez em uma carta endereçada a um amigo. Imaginar Caio e Cazuza juntos é como imaginar Verlaine e Rimbaud ? surreal.
 
Caio F. foi o primeiro a perceber, no Brasil, que a doença poderia ser tratada pela via da literatura. E assim o fez: crônicas, contos, entrevistas, depoimentos. Em três cartas publicadas em 1994 em um espaço no jornal O Estado de S. Paulo, o escritor confessou, sem medo ou vergonha, que também era portador do vírus. Em 1996, após deixar estarrecidos seus leitores, morreu em decorrência da doença. Por sua vez, a luta densa e sofrida de Cazuza e de Lucinha Araújo é de conhecimento do Brasil: preconceito, tabu, tratamento importado, fé e, por fim, a morte de um artista rútilo: "Eu vi a cara da morte e ela estava viva", cantou.
 
Seguindo, lembro-me da professora que tive no primário. Ana Maria. Era alta, bonita, rígida. Ela morreu no dia do meu aniversário de 11 anos. Os adultos disseram em tom sardônico, e eu ouvi: ela tinha Aids, havia contraído do marido, que morrera meses antes. Minha cidade no sudeste goiano parou. Eles disseram coisas absurdas sobre a sua morte. Na escola, ela logo foi substituída, mas eu nunca me esqueci dos comentários regressistas e maldosos que fizeram a respeito de sua doença e dor.   
 
Mais de 12 anos depois, adulto, tenho um amigo soropositivo. Paulo, de 22 anos, contraiu o HIV há três. Ele faz parte dos mais dos 39 mil brasileiros que adquiriram o vírus, em média, por ano, desde 2009. Hoje, em pleno 2015 as coisas, por sorte ou não, são diferentes. Atualmente, ele goza de uma boa saúde. A cada dois meses ele vai ao CRDT, na Av. Contorno, no Setor Norte Ferroviário, confere sua carga viral, seu perfil bioquímico e volta para casa com o coquetel de medicamentos que usará por pelo menos dois meses. O coquetel, por Deus, mesmo com todos os efeitos colaterais, impede a multiplicação do vírus da imunodeficiência humana no organismo. Neste contexto, Paulo e outros milhares têm aí um fio longo de esperança, com mais qualidade de vida e ânimo.
 
Em conversa, Paulo me conta que ao receber o diagnóstico sentiu um branco nas vistas. No momento seu coração arfou e a boca secou. Irracionalmente ele pensou em chocar-se frontalmente com um carro em alta velocidade em alguma rodovia. Por hora, meses depois do baque e do sofrimento de aceitar-se portador do vírus, Paulo continuou por aí... 
Agora ele integra  uma rede de jovens que aconselha novos portadores do vírus, além de discutir em palestras o uso do preservativo. Paulo, que não sabe em qual ocasião contraiu o vírus, diz viver mais leve que antes.
 
Terminando a faculdade de Direito como bolsista do Prouni em uma universidade goianiense, ele quer continuar pelejando contra o preconceito. 
Em 2000, na morte de Bréa, a psiquiatra Carmita Abdo afirmou que a Aids desperta nas pessoas a sensação de morte. “O preconceito também existe porque o soropositivo passa a ser visto como um moribundo. E ninguém gosta de conviver com moribundo. As pessoas preferem se afastar do velho, do cancerígeno, do miserável, do portador do HIV. São figuras desagradáveis, que nos lembram da existência da morte”, disse.
 
Por sorte, o combate à doença vem avançando nos laboratórios e, um pouco diferente da dor e discriminação que no passado alguns sentiram, Paulo não amarga o total isolamento. Meu amigo tem o meu grito e o de outras pessoas que, como neste dia mundial ao combate à Aids, profere em tom e letras garrafais: NÂO ao preconceito e SIM à consciência e a humanidade. Somos esperançosos e acreditamos que o preconceito contra o portador do HIV é apenas um dos incontáveis desastrosos sentimentos humanos que devem ser banidos de nossas pautas. O HIV não me lembra a morte, mas sim a vida e a luta pela continuidade.
 




*Thiago Araújo é jornalista.

Comentários

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  • 01.12.2015 14:09 Nanda

    Acho que o grito mais alto deveria ser contra a imprudência e a vida promíscua que essas pessoas têm ou tiveram e acham que não terão consequências disso tudo. O vírus não é "moralista", ele é fatal. As pessoas querem viver de qualquer jeito e depois não sofrerem as consequências de seus atos? A culpa é do "suposto" preconceito que existe ou a culpa é da inconsequência dos atos das pessoas? Convenhamos...

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