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GABRIEL CHALITA

Sinfonia do encontro

| 24.03.17 - 18:39
Um olhar. Apenas um olhar e a quietude. E o coral de vozes não mais a amedrontou.
 
Era uma menina. Ainda nos tempos da infância. E era tímida. E tinha os medos todos comuns à infância e a todas as idades.
 
Os pais moravam longe um do outro. Optaram por tentar outras escolhas. Filha única a menina. Era a mãe quem a preparava para ir à escola. O pai a visitava quando podia. Sentia falta do pai a menina,  mas ressentia não conseguir dizer o que sentia. Ensaiava pedir alguma atenção. Chegava a pronunciar para si mesma o que haveria de dizer. Não dizia.
 
A mãe estava sempre em busca de algo que a menina não compreendia. Sobressaltada com a vida. Com as buscas. Com os fracassos.
 
A menina tinha medo do fracasso. Alguém disse que ela não cantava bem. Brincadeira estúpida, talvez. Mas a incomodou. E como! Quis sair do coral, mas não conseguiu dizer. E por lá ficou. O medo, nesse caso, foi-lhe companheiro.
 
Era o dia da apresentação. Mulheres e homens estavam no teatro. Entraram as crianças. A menina tinha o coração acelerado. Resolveu cantar baixo para não incomodar. Talvez assim não percebessem os erros da sua voz. Temia esquecer a canção. Temia ter alguma tontura. E o medo roubava dela o prazer de estar ali. Resolveu ficar um pouco escondida. Melhor que não a vissem. Com olhos baixos, teve um súbito de coragem e olhou. Um olhar. Depois de tantos que nada viram. Um olhar e o encontro com os olhos da mãe. Um sorriso. Um alívio. E mais um desejo.
 
O pai estava entrando. Ela viu ao longe. E não precisou de mais nada. Esqueceu-se de tudo. E cantou. E participou daquela sinfonia. Naquele tempo em que o tempo ainda não dizia quanto é apressado.
 
A menina cresceu. Os pais se foram. Amores vieram para participar da sua vida. Os medos ainda a incomodam. Ora fazem mal, ora fazem bem. Fazem mal quando retiram dela possibilidades incríveis. Fazem bem quando a ajudam a permanecer atenta para, na vida, não desafinar.
 
A menina virou cantora. Canta como necessidade vital. Canta e permanece nos que a ouvem. Ganhou confiança. Sabe que saem de casa para vê-la. Sabe que silenciam os murmúrios para ouvi-la. Vez em quando, lembra-se de como tudo começou. Naqueles desencontros, encontrou, mesmo que distantes um do outro, os olhares de que necessitava. Estavam ali a dizer algo. E a sinfonia iniciou a sua jornada.
 
Encontros. Cantores ou construtores. Julgadores ou auxiliares. Motoristas ou doutores. Professores ou professadores de qualquer crença. Estão todos tentando encontrar o tom da própria vida. Nos inícios, a dificuldade é talvez maior. A menina, feita mulher, ainda é tímida. Ainda economiza nos ditos. Gosta do palco porque se sente segura. No canto, encontrou o segredo de dizer o que não conseguia dizer, o que talvez ainda não consiga. Sofreu de amores que se foram, mas prosseguiu cantando. Entusiasmou-se com outros que ofereciam eternidades, mas não deixou de cantar.
 
Na sinfonia da vida, foi percebendo que é preciso ser forte. Que a dependência de olhares não faz bem. Naquele dia, os pais foram. Poderiam não ter ido. Poderia ter sido tudo mais difícil. Mas eles foram. Alquebrados de necessidades, ansiosos por outros encontros, frios um com o outro, mas, com tudo isso, foram. Algum Maestro os inspirou a perceber que a menina era maior do que as suas pausas, que a menina iniciava na sinfonia da vida os seus primeiros acordes. E precisava deles. Indubitavelmente, precisava deles.
 
Se soubessem o poder que têm sobre o amanhã dos seus filhos, os pais seriam um pouco mais atenciosos. Venceriam, certamente, outros certames, para estar onde devem estar. Entrecruzando olhares, expulsando medos, sorrindo.
 
A menina-mulher hoje canta o amor. Acredita no amor. Fala dos pais com os olhos marejados. Eles se foram tão cedo. Os mesmos olhos que os viram. Uma, um pouco à frente; o outro, chegando apressado. Mas estavam ali.
 
Antes de partirem, puderam vê-la consagrada. Tiveram orgulho da menina tímida. Cantaram as suas canções. Encontraram-se muitas vezes. Sem os ressentimentos do início da separação. Maduros compreenderam que o tempo do amor foi capaz de gerar amor. E que melhor do que lamentar pelo que poderia ter sido era celebrar o que foi. Também eles, um dia, fizeram parte de uma mesma sinfonia que, como toda sinfonia, um dia chega ao fim. Acabou antes de terminar? Talvez, sim. Mas existiu. E a menina continua existindo.  
 
Seus olhos olham outros olhos. Mas aquele continuam vivendo na menina e a fazendo cantar.



*Gabriel Chalita é presidente da Academia Paulista de Letras

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