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Gismair Martins Teixeira

Cassini, Saturno e uma alegoria

| 05.05.17 - 08:16
 
 
No álbum “Bombom”, de 1983, Rita Lee cantava em “Desculpe O Auê”, uma das principais faixas do disco: “Desculpe o auê/Eu não queria magoar você/Foi ciúme, sim/Fiz greve de fome, guerrilhas, motins/Perdi a cabeça, esqueça//Da próxima vez eu me mando/Que se dane meu jeito inseguro/Nosso amor vale tanto/Por você vou roubar os anéis de Saturno”.
 
A letra da canção interpretada pela ex-vocalista da célebre banda psicodélica “Os Mutantes” se torna bastante significativa e apropriada com o recente noticiário do mundo astronômico. O final do último mês foi assinalado pelo início da etapa derradeira da missão da sonda espacial Cassini, lançada em 1997 pela Nasa, em torno do planeta dos anéis e seus principais satélites. A sonda e o evento foram alvo de homenagem em“Doodle” do “Google” no seu espaço de abertura de pesquisa
 
Após orbitar a lua Titã, que os cientistas já sabem ser dotada de um oceano de metano, o artefato humano finalmente mergulhará entre os colossais anéis em direção à órbita de Saturno, situando-se entre o planeta e seu maravilhoso aparato natural. Durante o percurso, que se encerra no próximo mês de setembro, quando a Cassini imergirá na atmosfera planetária transformando-se num incandenscente meteoro, espera-se que a sonda realize fotografias extraordinárias que se juntarão às já feitas até o momento.
 
A trajetória da sonda da Nasa pela joalheria espacial evoca, ainda, outro instigante e curioso dado cultural. Após o advento da fotografia, a antropologia registra, sobre essa evolução tecnológica humana, o comportamento de povos de diversas localidades do planeta que manifestaram um receio que o homem dito civilizado considera como superstioso, de que a exposição da própria imagem diante de uma câmera fotográfica resultaria no sequestro da alma. Em seu conto “O Espelho”, Guimarães Rosa menciona algo parecido etnograficamente em relação a esse objeto que pode ser pensado como uma espécie de fotografia fluida.
 
 Vinculando a superstição de fundo antropológico universal e a poética  do cancioneiro brasileiro, surge a metáfora, desdobrável em alegoria, que é uma espécie de macrometáfora. Definida em sua expressão mais simples por Aristóteles, em “Arte Poética”, como “a transposição do nome de uma coisa para outra”, a metaforização relativa, ou alegoria, que emerge da homérica realização da Cassini – fotografar os anéis de Saturno para o embevecimento e estudo científico terrestres – permite estabelecer singular correspondência entre o roubo da alma pelas lentes fotográficas e o feito da sonda norte-americana.
 
Assim, pode pensar-se que a sonda espacial terráquea, alegoricamente dizendo, roubará em seu “grande final”, que é como os cientistas batizaram os últimos dias de sua missão, os anéis de Saturno, que terão suas almas – o mistério do conhecimento – capturados por uma extraordinária profusão de fotografias, verdadeira escrita em luz a desvelar parte considerável dos segredos astronômicos escondidos pelos famosos anéis.
 
Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela UFG; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduce-GO.
 

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