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Gabriel Chalita

A despedida do meu filho

| 10.06.17 - 18:44

Goiânia - Era um velório. Um velório de um jovem. De um jovem negro. Numa região pobre de uma grande cidade.
 
O mapa da violência no Brasil é estarrecedor. Desperdiçamos vidas. O número de mortos é superior a regiões de guerra. Entre 2011 e 2015, a sangrenta batalha na Síria levou 256.124 vidas. No Brasil, no mesmo período, a sangrenta batalha do dia a dia levou 278.839 vidas. 

1 pessoa é assassinada no Brasil a cada 9 minutos. São 160 mortos por dia. Era o velório do filho de Aurora. Aurora é um lindo nome. Significa amanhecer. Mas o amanhecer daquele dia foi doloroso. Tão doloroso quanto o amanhecer de tantas mães que veem seus filhos prematuramente partindo.
 
Aurora é professora. Paulo era o seu único filho. Aurora teve uma vida sofrida. Não conheceu o pai. A mãe, entre bebidas e lucidez, criou-a com algum cuidado. Com o que conseguiu. Ela teve garra. Ousou enfrentar o destino e se destinou a uma vida melhor. Estudou com afinco. Mulher, negra, pobre, a salvação estava no livro. Decidiu ela.
 
Formou-se professora. Professa todos os dias a crença de que há de salvar, do fim antecipado, os seus alunos. Entristece-se quando vai ao cemitério do seu bairro. Quando lê nas lápides dos túmulos a data de nascimento e a de falecimento dos que ali foram deixados. Jovens.
 
Aurora sempre teve a consciência de que não se combate violência com violência. Mas com inteligência. Não acredita em fórmulas mágicas, em promessas de políticos inconsistentes. Acredita no trabalho. E no amor. É com amor que ela vai todos os dias para a sua escola e olha para aqueles moços cheios de certeza de que ela pode fazer a diferença em suas vidas.
 
Mas, hoje, Aurora está triste. O filho foi vítima de uma das tantas balas perdidas que encontram pessoas. E lá está em um caixão o filho de Aurora.
 
Ele sonhava ser engenheiro. Sempre gostou de matemática. Gostava de ver as construções. Dizia que gostaria de construir casas populares. Casas para quem não tem. Para quem sonha. Era um sonhador o filho de Aurora.
 
A mãe olha para o filho e nem tenta entender. Apenas sentir. Aperta o peito com as mãos. Chora silenciosamente. Pensa no depois. Na casa vazia. Nos livros com as anotações dos estudos. Nas fotos. No quarto com suas lembranças.  Nas promessas de que seria ele a cuidar dela quando ela envelhecesse. Na injusta vida que inverteu a ordem de tudo. Quem é responsável por essa dor? Não. Ela não está pensando apenas no que disparou o tiro. Está pensando em todos que fazem isso. Está pensando nas mães dos outros que, naquele dia, também estão chorando. O que o homem está fazendo com o homem? O que a humanidade está fazendo com a humanidade. Como se combater o foco que gera a violência? 
 
Ensina ela literatura. Gosta de falar das personagens que amam e que sofrem. Explica que a literatura é a história dos sentimentos. E que os sentimentos, geralmente, são bons. Que há muitos que sofrem por uma fotografia no passado. E o passado é filme e não fotografia.

Quando se olha o todo, há mais para celebrar do que para lamentar. Mas e agora? A foto diante do caixão vai transformar o filme da sua vida? Como voltar a sorrir? Como sair de casa normalmente e ir trabalhar? Como voltar depois? Como esperar os fins de semana com algum bom programa com o filho? É dor doída demais.
 
Aurora é guerreira. A tristeza não será fácil de ser superada. Mas haverá outros amanheceres. Outras famílias precisando de quem não desista. De exemplos de superação. De dedicação.
 
Amanhã, será um outro dia triste para Aurora. Para outras mães. Para outras famílias. A guerra continua. A violência desafiando os que sonham com a paz. Com a paz no mundo. Com a paz nas mentes.
 
Inclusive daqueles que não pegam em arma, mas se armam para odiar.
 
Amanhã, será um outro dia para Aurora se lembrar, chorar e levantar. Em decisão de melhorar o mundo. É isso que ela pensa. O seu filho se foi. Os filhos dos outros ainda precisam dela.

*Gabriel Chalita é escritor, doutor em Filosofia do Direito e em Comunicação e Semiótica.

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