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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

Ora, pois!

O preço de sair sozinha

A conta vai para quem? | 06.02.14 - 20:03 O preço de sair sozinha (Foto: reprodução/Youtube)
Goiânia - A leitura abaixo só faz sentido se assistir a esse link de um trecho do programa “Encontro com Fátima Bernardes”, para que se possa estar atento às falas da apresentadora e, principalmente, da atriz Sophie Charlotte e do psicanalista Francisco Daudt.

A atriz afirma que gosta de sair sozinha. Ele arrebate dizendo que “Se você sai vestida para matar, vai para um bar, toma um chopinho e passa um radar em torno, as pessoas vão fazer a leitura correta de que você está disponível”. Continua. “A mulher que está sozinha (em um bar) é frequentemente uma garota de programa que está à caça de companhia”.
 
Cinco minutos depois que assisti a esse trecho (veiculado no dia 20/1), ainda engasgada com as frases do médico, levei a mão à gaveta de minha mesa que ainda abrigava uns guardanapos de uma noite que não faz tanto tempo. Neles, havia rascunhos de um texto escrito em um bar meio pizzaria em uma noite dessas. Era daquelas em que eu queria ficar sozinha. 
 
As pessoas mais próximas de mim não entenderam eu recusar a companhia delas em plena sexta à noite. Mandaram sms insistindo para que fossem ao meu encontro. Levou um tempo para entenderem que eu não queria e que, principalmente, estava tudo bem. Eu só queria gozar de minha companhia naquela noite. A gente nunca tem tempo para conversar com a gente mesmo.
 
Metalinguagicamente, os guardanapos registravam um texto que escrevi sobre esse estar sozinha. Apenas tive uma vontade louca de reunir três coisas de que gosto muito de fazer: comer pizza bebendo cerveja de trigo, ouvir música e escrever. E não cabia ninguém além de mim nesse compromisso. Muitas vezes faço isso em casa. Mas nesse dia, quis ir ao bar.
 
Algumas frases desse guardanapo eram. “Inventaram um pavor de solidão que era exatamente o que ela queria naquela noite. Sentou-se ao seu lado como quem goza da melhor companhia. Como quem nunca está só”.
 
Continua. “Atravessou o bar com roupa de trabalho, ainda, e com maquiagem borrada. Pensou que tanto melhor assim. Repeliria possíveis companhias que atrapalhariam a sua noite consigo mesma”. O que me fez escrever nesses guardanapos foi o que conto na parte seguinte. 
 
“Mal se sentou... 
- Oi, senta com a gente. 
Um conhecido a reconheceu na mesa do cantinho, isolada, no escuro. 
- Obrigada, só vim comer uma pizza e já vou.
Ele insistiu. 
- Come com a gente! Acabamos de pedir!
Ela insistiu de volta. 
- Quero ficar quietinha, obrigada!
- Mas tá tudo bem?
- Sim!
- Certeza?
- Claro!
Respondeu já sem paciência. 
Enquanto bebia só e ouvia a canção agradecida pela trilha sonora da noite, cruzou com olhares de compaixão, como se dissessem: tão nova! Tão só!”
 
Não assisti ao programa todo “Encontro com Fátima Bernardes”, mas pelo trecho que compartilhei acima acredito que tenham discutido justamente isso: estar só não é sinônimo de estar triste, estar mal ou, pior, estar procurando companhia.

Naquela noite tudo que eu queria era não ter nenhuma companhia. Sai tranquila e leve dali, como quem encontra um amigo que não via há muito tempo. Eu não me dava o direito de estar só comigo fazendo coisas de que gosto há uns dias. Apenas isso.
 
Mas, como o psicanalista Daudt afirma acima, há uma diferença: ir ao teatro sozinha, ir ao cinema sozinha ou, quem sabe, almoçar sozinha, pode até não gerar problema quando o sujeito é uma mulher. Mas sair sozinha, para um bar (como no meu caso), principalmente vestida para matar significa: você é garota de programa. Ou, você está disponível. Ou, pior: você tem que pagar pelo preço de fazer isso.
 
Ora, ao reler minhas próprias frases, pude constatar o preconceito que me impede de ter a liberdade de exercer o que queria naquela noite (ficar só, em paz, sem nenhuma companhia em um bar) que, para o psicanalista é traduzido pelo código social: sou garota de programa. Eu mesma disse que, como estava vestida com roupa de trabalho e sem maquiagem, e não “vestida para matar”, talvez tivesse mais paz. 
 
Fazendo uma análise psicológica bem rasa do que escrevi e confrontando com a fala de Francisco Daudt, eu já sabia ao entrar no bar – injustamente - do “preço que teria que pagar” por estar sozinha ali. Mas eu não estava disponível. Eu não queria ninguém além da minha companhia. Tudo que menos queria era alguém para se sentar à minha mesa (quanto mais outras coisas). E, muito menos, sou prostituta. Eu apenas queria ouvir música, beber cerveja, comer pizza, escrever e pensar. 
 
O preço que eu sabia que teria de pagar não se chama código social. Isso se chama construção histórica de dominação do homem sobre a mulher. É o mesmo incômodo que tenho ao passar ao lado do boteco próximo à minha casa.

Dia desses era feriado e boteco estava fechado. Passei em cima da calçada e não na rua, como sempre faço. Desde que a padaria do “Bruno” se transformou naquele bar, há uns 18 anos, não pisava na calçada, como é meu direito.
 
Se não é por medo, é pelo incômodo das cantadas – quando estou vestida para trabalhar ou quando estou de shortinho e vou apenas comprar um refrigerante na esquina. Não importa. É o mesmo medo que tinha ao ir para o ponto de ônibus às 20 horas com maquiagem e toda arrumada para encontrar amigos. 
 
Eu pago mesmo, alto, por muitas coisas que faço – como a atitude transgressora de ir sozinha a um bar comer pizza. E aqui e ali diariamente as mulheres pagam muito alto por muita coisa. Por dançar do jeito que quer. Por transar com quem tem vontade. Por gravar vídeos íntimos com o namorado. Por usar um shortinho curto. Ou, simplesmente, por amar, se entregar a um relacionamento e depois não conseguir sair dele. 
 
O que o doutor talvez não tenha medido (ou pior, tenha!) em suas palavras, é que “pagar pelo preço” pode significar meu incômodo no bar, as cantadas baixas no bar da esquina que tenho de ouvir, como pode significar estupro – clássicos casos de meninas bêbadas que acabam violentadas - e até assassinato – como o caso de tantas mulheres que traem os maridos e tem esse castigo eterno. 
 
Em Bruxelas, quem tem de pagar pela cantada não é a mulher, é o homem (pedreiro ou psicanalista) que a proferiu. E pagam mesmo: de 75 a 250 euros. O documentário de Sofie Peeters, “Femme de la Rue”, comprova o constrangimento, pavor e medo que as mulheres sofrem ao serem cantadas nas ruas. 
 

Obs: Este trailer não possui legendas em português
 
A mulher não tem de pagar pela saia curta, pela cantada, pelo jeito de dançar, pelo número de caras com quem transou. Não tem que ter os olhos perfurados porque o marido é louco de ciúmes. Não tem que morrer porque tem um amante. Não tem que ser estuprada porque o vestido é provocante. 
 
Não tem que apanhar porque chegou tarde em casa. E eu não quero pagar por nada para poder ir sozinha ao bar ficar em paz. A ordem do pagamento está invertida, seu dotô. São esses seus códigos sociais que estão de cabeça para baixo. 
 

Comentários

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  • 29.09.2022 02:45 Lara

    Nádia, fiquei encantada com a sua colocação em relação a um assunto tão "delicado" ao ponto de vista social! Hoje mesmo senti uma enorme vontade de ir ao barzinho sozinha, comer, distrair e aproveitar a minha companhia. Fui após o trabalho e senti olhares julgadores, cheguei a ouvir quando fui pagar a conta: "nossa, ela está sozinha". Parece que tinham pena de mim.. isso é muito chato! Sempre saio sozinha, parques, almoços.. e noto que não tem mulheres sozinhas passeando por aí. Um assunto que tem me interessado bastante e tenho me questionado: será que esse estigma social impedem essas pessoas? Obrigada pelo compartilhamento de sua escrita.

  • 21.06.2019 09:59 Guilherme

    Olá Nádia, Sou de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Cheguei ao teu site pesquisando no Google o assunto "mulheres sair sozinhas". Interessante tua colocação. Eu, por muito tempo, tinha essa ideia equivocada de que sair sozinho a lugares de alimentação e lazer era sinônimo de ser um fracassado, um maluco, etc. Ainda mais quando se é mulher. São poucas as mulheres que se aventuram sozinhas indo ao cinema, ao restaurante ou à balada. Eu me cobrava demais, chorava, reclamava que eu nunca tinha companhia, que ninguém me queria, etc. Sempre fui tímido e introspectivo, por isso, nunca tive uma turma de amigos "fixos", com quem eu saísse bastante e me comunicasse com frequência, desde o ensino médio. Pois nos últimos anos do ensino Fundamental eu até tinha uma turma legal, mas, como mudei para outra escola no colegial, mais distante de casa, perdi o contato com diversos colegas da época. Voltando ao assunto de lamentar a falta de companhia, eu percebo que perdi muito tempo da minha vida, além de perder amizades que eu tinha, queixando-me em excesso. Depois de anos de terapia, aprendi que é possível, sim, a gente curtir a própria companhia! Sem ficar ligando pra opinião dos outros. O importante é sermos felizes com nós mesmos, com o que gostamos de fazer. E com o que não gostamos, tentamos tirar o máximo proveito. Sou servidor público, tenho 37 anos de idade. Abraço, Guilherme M.

  • 15.01.2016 01:51 Eliza

    Amiga, somos muito parecidas, tenho muitos amigos, mas gosto de sair sozinha, para ter minha companhia meus pensamento, observar pessoas. E poder chegar em casa escrever tudo que senti e ressenti. Amo escrever. Sou advogada mas ficar sozinha e ter personalidade é uma força que poucas tem. Sinta-se bem independente dos olhares.

  • 19.03.2014 18:46 Thais Cardoso

    Texto claro e objetivo. Excelente! Parabéns!

  • 14.02.2014 07:46 Lais

    As ideias GENERALIZADAS tem um bilhão de exceções e levam anos, séculos para serem modificadas. Muitas vezes não são. Ficam grudadas na cabeça dos até mais modernos. Por EXEMPLO: " HOMEM NÃO PRESTA!" O pscicanalista não deu a opnião dele. Ele disse o que dizem por aí. Existe SIM uma máxima, uma ideia, de que a mulher que sai sozinha "vestida para matar" está querendo companhia. Pronto: é algo que está aí, solto na sociedade. AGORA, tá errado? Pode estar e pode não estar. Depende da mulher, da situação.

  • 08.02.2014 09:43 salisburguensis

    oi Nadia. me identifiquei muito com esse texto. para um homem também é difícil ficar sozinho. eu gosto muito, cresci saindo sozinho, mesmo com muitos amigos para sair acompanhado. quem mais sofre é o garçom.

  • 07.02.2014 10:18 Beatrice Labaig

    O que mais me incomodou na fala do médico, não é a opinião dele (e de muitos e muitas), é a justificativa "cientifica". Ele se baseia no status quo e pronto! Pera lá!!! Que raio de cientista é esse?? Ha alguns anos tinha escravidão, mas era errado, mas toda fazenda tinha, então ok! Ei! Que absurdo essa explicação! E eu adorei sua noite! E seu texto! Beijos

  • 07.02.2014 10:01 Uirá

    Parabéns, Nádia!! Textos assim inspiram e transformam. Abraço da família toda! Que as minhas meninas tenham o direito pleno de ir, vir e ficar!

  • 07.02.2014 07:27 joao carlos

    saber estar consigo mesmo é arte para poucos. parabéns, Nadia.

  • 06.02.2014 20:09 Aline Mil

    Me identifico totalmente, Nadinha. Quando costumo sair sozinha, principalmente para ir ao cinema, é difícil fingir que não me incomodo com os olhares. Gente que sente pena, gente que tem curiosidade e gente que simplesmente não entende o fato de que eu estou ali por pura opção. Ah, e esse documentário da Sofie Peeters é fantástico. Poderia se passar em qualquer rua brasileira, em qualquer esquina de Portugal, em qualquer viela africana e ainda faria todo sentido.

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Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

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