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Valesca Popozuda para pensar

Chega de recalque, Brasil! | 10.04.14 - 12:56 Valesca Popozuda para pensar (Foto: reprodução)
Goiânia - “A intenção foi fazer uma provocação à imprensa. Não quis ser irônico”. Assim o professor de filosofia da Escola de Ensino Médio 3, no Distrito Federal, Antonio Kubitschek, justifica a sua decisão de colocar em uma prova do terceiro ano uma questão citando a música “Beijinho no ombro”, de Valesca Popuzuda, e se referindo à funkeira como “grande pensadora contemporânea”.
 
Na prova elaborada pelo professor os alunos deveriam responder à seguinte pergunta: “Segundo a grande pensadora contemporânea Valesca Popuzuda, se bater de frente:”, e aí vinham as opções: “a) É só tiro, porrada e bomba b) É só beijinho no ombro c) É recalque e, por fim, d) É vida longa”.
 
O professor do Distrito Federal que resolveu chamar Valesca Popuzuda de "grande pensadora" numa questão de prova conseguiu levantar uma discussão interessantíssima: o que é ser pensador e o que é pensar? Mais que isso: o que é educar?
 
Paulo Freire, um dos poucos brasileiros a encampar um projeto nacional de educação, disse que ensinar não é transferir conhecimento e sim criar possibilidades para sua própria produção ou construção. Ou seja, segundo o maior educador da nossa história, educar não é um monólogo, mas um ato coletivo. Para ser bom professor, portanto, é preciso entender mais do que o conteúdo, a "matéria"; é preciso entender de alunos, porque só assim se consegue estabelecer canais e linguagens eficientes no trato com eles (e aqui entra uma ciência pela qual sou apaixonada, a Educomunicação).
 
Voltando ao caso da Popuzuda, explica o professor Antonio Kubitschek em entrevistas para a velha mídia (que só se preocupa com educação quando há algo "bizarro" a noticiar), que a citação partiu de uma discussão em sala de aula para se refletir sobre a construção dos valores em uma sociedade.  Ora, então, considerando a reflexão prévia da classe sobre a música no processo da construção de valores sociais (algo de imensa importância, principalmente depois que Zygmunt Bauman nos mostrou o mundo líquido); e considerando também que "Beijinho no ombro" está sendo cantado e mimetizado do Vidigal aos Jardins, qual o problema da discussão levantada na sala de aula do Distrito Federal? Seria por que se trata de cultura popular? Por que Valesca nasceu na favela e resolveu se rebelar contra sua condição e vencer na vida? Por que o funk é algo odioso e fere os ouvidos de quem prefere Jazz, música eletrônica, MPB?
 
Há quem diga que o maior problema foi chamar Valesca de "grande pensadora". A própria cantora reagiu à polêmica, negando-se a tal titulação, mas deixando uma pequena aula sobre o que é prioridade na discussão do interesse público: "Eu acho que as pessoas tinham de se preocupar era com o salário dos professores, com as escolas que não têm mesa, não têm cadeira, não têm nem giz. Acho que a gente tem de cuidar da nossa educação que está precária. Com tanta coisa para estar se preocupando, as pessoas querem gerar polêmica por isso".
 
Em poucas palavras, a funkeira resumiu um problema que não é resolvido por políticos que mais se preocupam com o poder, que não é bem abordado por uma mídia que só quer gerar espetáculo (e cada vez mais reportados com erros gritantes) e que não é enfrentado por muitos educadores incapazes de abraçar a educação como uma missão nobre, preferindo tradições ultrapassadas.
 
Se uma citação de Valesca Popuzuda em prova escolar foi capaz de levantar uma discussão nacional sobre o que é educar, é porque ela consegue, talvez mais que muitas teorias enquadradas em ABNT, fazer pensar num país que não é muito adepto dessa prática.
 
Hipocrisias muitas vezes são passadas para nós como se fossem valores e precisamos exercitar a autocrítica para vencê-las. Eu mesma torcia o nariz em relação à Valesca e ao funk e só fui quebrando alguns preconceitos meus depois de conhecer melhor suas origens e contextos. Por que devo achar que Arnaldo Jabor, que fazia pornochanchadas e hoje faz campanha política disfarçada de "colunismo" em jornalões, é um pensador genial? Só porque ele faz parte de uma elite que se acha dona da inteligência no país?
 
Por que Valesca, que consegue uma comunicação incrível com tantos públicos, não pode ser considerada um ser pensante, cujo trabalho é capaz de gerar reflexões até no processo educativo? Claro que pode! Como Jabor também pode, como Chico Buarque sempre pôde. Precisamos parar de achar que o padrão certo é o padrão da elite, que cultura é só a cultura da elite!
 
O que Valesca escreveu sobre essa polêmica, negando-se à condição de "grande pensadora" (humildade rara entre as "estrelas") e criticando a falta de foco nos verdadeiros problemas da educação, vale mil colunas do Jabor ou do Jô Soares, porque o Jô Soares foi educado na Suíça e só consegue ser entendido pelas elites do Brasil, enquanto a Valesca venceu a fome na favela e consegue falar tanto com as comunidades quanto com todo um país que está imitando seu "beijinho no ombro".
 
Chega de recalque, Brasil! E beijinho no ombro aos donos da verdade!
 
* agradecimento a Alberto de Castro, meu filho, que permitiu um debate essencial a este texto.

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