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Cássia Fernandes
Cássia Fernandes

Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

Alças de sutiã ao contrário

Destinos às vezes são decididos por um detalhe | 10.10.14 - 15:28 Alças de sutiã ao contrário (Foto: divulgação)
 
Goiânia - Já contei essa história há bastante tempo e sempre arranjo uma forma de costurá-la e rebordá-la com diferentes feitios e arabescos. Gira em torno de uma simples alça de sutiã, ou melhor, quem gira é um jovem casal em um salão parisiense lá pelos anos 60 ele um promissor e moreno jovem brasileiro com seus 20 e poucos anos ela uma linda esguia e loira moça francesa como sempre imaginamos que sejam lindas as moças francesas de então e principalmente da ficção também com seus 20 e poucos e 60 de cintura e um perfume floral inebriante que o entontece pois afinal têm fama de bons os perfumes franceses assim como reputação de arrogantes os nascidos na França Napoleônica e de não muito afeitos ao banho tentando ocultar seu ranço com fortes fragrâncias no entanto como é bom o buquê que emana de seu longilíneo pescoço e como ela é encantadora nesse tempo em que  ainda se usa alcunhar as mulheres com tais adjetivos e como baila com graça e como se deixa conduzir com docilidade e como quiçá dará uma namorada adorável e esposa  adequada pois que elegância tem de modos como é cuidadosa com sua toalete que belo vestido azul claro ela porta e que decote insinuante na justa medida em que deve ser exibida uma dama e como são formosos seus ombros quase completamente nus não fosse pela pequena manguinha japonesa rendada do vestido sob a qual descuidadamente que atraente descuido escorrega a alça de um sutiã... a alça de um sutiã branco não bege ... uma  alça suja uma alça absolutamente imunda!
 
E então o jovem termina precipitadamente aquela dança e se despede apressadamente da já não tão linda jovem francesa, na verdade uma branquela azeda e coquete, e toma um avião para o Brasil e aqui se casa com uma brasileira limpinha, que ao menos reputação de asseadas possuem as brasileiras, pois descendentes de índios que cultivavam o hábito de se banhar diariamente nos rios. Por causa, portanto, apenas de uma simples alça de sutiã, tomou um novo rumo e escreveu distinto destino aquele rapaz, que passou o resto de sua asséptica e inodora vida detestando perfumes, sobretudo os muito fortes, principalmente os franceses, e sofrendo fortes dores de cabeça quando qualquer mulher ousava aparecer perfumada diante dele , quando eu, sua nora por algum tempo e nora da tal brasileira limpinha, me atrevia a passar perto tendo me excedido na perfumaria.
 
 E é por causa do importante e decisivo papel (de tecido, celulose, outras substâncias e mesmo ar) que um pequeno detalhe pode ter na vida das pessoas, que giro tanto em torno dessa mesma história. Quantos namoros não foram desfeitos, quantos empregos não foram perdidos por causa de uma simples alça de sutiã, de um pequeno e aparentemente inofensivo não-sei-o-quê, que nos provocava uma sensação, evocava uma lembrança, reforçava um preconceito. Uma simples palavra errada na hora errada: uma “perca”, um “gavando”, um “menas uma”, um “eu formei na faculdade”. Um mero deslize ortográfico: “desculpe se te encomodo”, “seus olhos são inespressíveis”. O ruído ao mastigar ou a engolir a água. Aquela cor roxo caixão das meias no clímax do despir-se. O cheiro de cabeça não lavada. Os pelos escapando pelas narinas. Aquelas unhas com o esmalte descascado de puta pobre, porque puta rica tinge as unhas de vermelho, mas não precisa lavar roupa. O gesto enfastiado de empurrar o prato para longe de si tão logo termina de comer.  E assim por um mísero nada foi perdida a chance do amor, do emprego, do amigo, decidiu-se por um caminho e não por outro nas encruzilhadas cotidianas e corriqueiras do destino.
 
Quando certa vez narrei a um então namorado essa história, ele, esperta ou romanticamente, me fez lembrar das alças de sutiã ao contrário. Como assim, alças de sutiã ao contrário?  Ele se referia àqueles detalhes que em vez ter um efeito negativo provocavam uma impressão favorável e faziam com que as pessoas se encantassem, se enamorassem, se casassem, se reproduzissem, contratassem empregados, fechassem contratos, comprassem imóveis.  O avesso daquela alça imunda que, em vez de ser um tropeço capaz de por fim à caminhada, deu prosseguimento a tudo, levou o casal a girar, a girar, a girar, são dois pra lá dois pra cá, e fez com que tantos nenéns nascessem povoando esse mundão velho de meu deus sem porteira.
 
Então eu mesma me recordei que entre nós a alça de sutiã favorável fora não uma alça, mas as mangas vazias de um casaco. Sim o casaco que aquela noite também era Paris era primavera caminhávamos à noite e eu sentia frio com minha blusa muito leve e ele retirou o seu próprio casaco e o colocou sobre os meus ombros deixando as mangas balançando enquanto ele me enlaçava a cintura transfigurando-se ele assim em um daqueles antigos galãs de cinema e eu em uma daquelas frágeis heroínas de filmes antigos que sempre davam às costas aos mocinhos implorativos para que eles  lhes suplicassem perdão beijos casamento e em vez de me beijar o rosto me beijou a testa um ósculo na fronte que expressão antiquada mas eu ouvira dizer  que isso é sinal de respeito e nunca nenhum outro homem voltaria a depositar um selinho ali até os dias de hoje e dessa forma tais gestos me fizeram voltar meus olhos para aquele exemplar masculino que até então me parecera mais um predador maçante e será que ele não era mesmo somente mais um lobo vulgar mas a partir daquela alça de sutiã ao contrário aquele mínimo detalhe eu passara a edificar a criatura que amaria e o amaria e o amaria arrastada pelos imperativos da fantasia e dos hormônios para essa maluca dança do amor até que um dia eu estacaria, por um outro detalhe qualquer, devolvendo-o assim à sua condição primitiva e ordinária de devorador de presas fáceis. Por conseguinte, o casaco sobre meus ombros, a noite de primavera, Paris, seriam apenas uns bobos clichês de obsoleto cavalheirismo, de desgastado romantismo que o cinema e as novelas de TV já usaram e reusaram e de que, passados séculos da invenção social do amor, os animais humanos continuam se valendo, emocionados: luas cheias, noites estreladas...
E com que tantas alças de sutiã ao contrário deparei ao longo da vida e com quantas você aí não se deparou?! De algumas guarda uma impressão vaga, de outras nem se recorda. Talvez certa vez um cheiro, um tipo de bálsamo mineral que exalava do centro do peito daquele rapaz, odor de pedra limada por muitas águas de cachoeira; a forma com que, aquele outro, para aproximar a boca de seu ouvido em um show barulhento, te puxou, não pela cintura, mas pela nuca, arriscando-se a levar um soco, e acabando admirado e premiado pela autoconfiança e ousadia viris; quem sabe a forma tímida que você viu um então desconhecido definir-se em uma rede social: “sou um”; a foto tirada diante do lugar em que se passava seu filme preferido Montanha Alguma; ah, aliás, as fotos, quantas fotos: aquela com o queixo abaixado e o triste e contemplativo olhar para uma fonte; a outra em que se podia avistar toda a Praça de São Pedro, o lugar em que você havia percebido a luz mais dourada e sentido a maior emoção de sua pequena e pouco viajada vida; a mesma canção que vocês descobriram estar ouvindo no mesmo dia; o mesmo livro preferido marcado nas mesmas páginas.
 
 Sei na verdade que é a partir dessas miudezas, conjugadas às conjunturas de nossas carências e áridas lutas pela sobrevivência, somadas aos tantos clichês do romantismo, que vamos construindo a nossa ficção sobre aquela pessoa, vamos edificando nossas fantasias, vamos nos deixando enredar na dança amorosa, sem vírgulas, sem pausas para respirar. Vamos girando e girando e girando, até que de repente, um feio dia, aquela mesma alça de sutiã ao contrário que tanto nos atraíra inicialmente passa a nos parecer uma imundície. Aquela mulher que se afigurava tão charmosa, sensual e misteriosa, pela forma como erguia o queixo para soltar a espiral de fumaça do cigarro, agora não é nada mais do que uma neurótica fedorenta; aquele homem incrivelmente sedutor, ardente e voraz não passa de um maníaco sexual repugnante.
 
Quanto mais imaginosa nossa natureza, com mais alças de sutiã ao contrário nos defrontamos, mais somos acometidos de súbitas hipnoses e encantamentos, mais achamos que esses detalhes são coincidências mágicas e místicas, que são encontros de almas para os quais estávamos predestinados. Há quem goste e quem desgoste de ser assim. Eu, particularmente, ora aprecio, ora deploro. E existem muitos que preferem não se deixar arrastar por alça de sutiã alguma, nem suja nem ao contrário, que se propõem e acreditam poder submeter todas as suas impressões subjetivas ao crivo da razão.  São pessoas que tentam ser muito bem resolvidas e analisadas, que se empenham em fazer suas escolhas objetivamente, sem se deixar conduzir pelas armadilhas do subconsciente, reminiscências e preconceitos. Eu gostaria de ser um pouco assim. Todavia, por outro lado, receio, supondo que deixaria para trás, desperdiçadas, tantas chances de gostosas taquicardia e poesia.
 

Comentários

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  • 27.10.2014 16:59 Cássia Fernandes

    Obrigada pela leitura, Joao Carlos e Msamsa. E a você também, Romero. A propósito, você lembrou bem de Saramago e me fez recordar dos diálogos com o Sr. Teto em Todos os Nomes. Ah, e Padre Quixote já está a meio caminho, digo, já ando lá pela metade. Deliciosa viagem.

  • 23.10.2014 16:19 romero M.

    Desse, eu gostei. À Saramago, quase perdi o fôlego no primeiro parágrafo. Depois deu pra respirar. No 3º, adorei as observações ortograficas, preocupação para quem é dessa lida. Ri dos hábitos abomináveis ( em muitos, masculinos) e pra mim faltou apenas incluir o "cruzar os talheres" ao fim de uma lauta refeição. Depois, empurrar o prato. Eu, infelizmente, nunca fui impactado por uma 'alça de sutiã", ainda que fosse invertida. Grato por sua graça.

  • 20.10.2014 15:07 Msamsa

    Estamos à mercê da aleatoriedade dos fatos.

  • 14.10.2014 21:21 Joao carlos

    Adorei. Devorei o texto em um só fôlego, sem me sentar. Obrigado.

  • 12.10.2014 10:23 Cássia Fernandes

    Será, José Murilo? Talvez não apenas em um, mas em seu conjunto harmonioso?

  • 11.10.2014 10:22 José Murilo Soares de Castro

    mas é no detalhe que se encontra a verdade ....

  • 11.10.2014 10:05 Cássia Fernandes

    Tem razão, Nuno. Detalhes são fundamentais, mas a obsessão com eles pode por tudo a perder e nos torna apenas pessoas implicantes e intolerantes. Que bom que voltou. :)

  • 10.10.2014 19:02 Nuno Cavaco

    O detalhe inesperado impressiona, a atenção obsessiva aos detalhes depressiona, o detalhe previsto confirma, a ausência de detalhes desagrega...

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