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Cássia Fernandes
Cássia Fernandes

Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

Sobre crer ou não em milagres

Também sobre cronópios, famas e esperanças | 02.12.14 - 14:33

Goiânia - Há pouco tempo recebi pelos correios um presente: um pequeno livro que li calmamente durante noites e noites antes de dormir. O livro, como me confessara o remetente, continha uma proposta velada que deveria ser desvendada. Era o livro Monsenhor Quixote de Graham Greene. Tão logo terminei a leitura, ainda não tendo atinado muito bem quanto ao sentido da tal proposta que ele encerrava, viajei para o Rio. E eis que, esquecida de nossa correspondência irregular, encontro por acaso em um sebo em Copacabana essa mesma edição, fato e foto que incontinenti trato de comunicar ao tal remetente. Ele logo pergunta se eu me recordava de um conto do livro de Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas.
 
“Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
 
Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amistosa, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.”.
 
O remetente então completa: “algo se delineia em sua vida que não pode ser contrariado. Este caminho tem que ser visto, explorado em sua magnitude”.  Não sabe ele que ao escrever tais palavras apanha-me justamente no ápice de minhas reflexões sobre os tais desígnios da Providência; sobre o ditado do Deus que escreve mesmo por linhas tortas, que embaralha linhas de livros, mãos e de destinos. Pensava eu justamente nesses dias que muitíssimo pouco está sob nosso controle, que às vezes esperamos e nos acreditamos contemplados por milagres, por lances de sorte, mas que no fundo tateamos um tanto quanto cegamente sem saber discernir muito bem se nos defrontamos com milagres ou com meros frutos de nossas imaginações e fantasias , que rapidamente se revelam fragmentos banais de realidade.
 
Pensava também em uma dessas citações que por aí circulam, atribuídas a Albert Einsten que diz o seguinte: “só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre.” Naturalmente, que sou adepta da segunda corrente, o que se de um lado faz de mim um daqueles seres contemplativos, fantasiosos e mesmo supersticiosos, um verdadeiro cronópio de Cortázar, por outro me fornece a tal da “joie de vivre”, a tal da alegria de viver que contrabalança  certa tendência à melancolia. A crença de que há algo de belo a se ver a cada amanhecer, que há sempre a possibilidade de uma surpresa, de um refrigério, de um ser singular e uma idiossincrasia, em meio ao sufocamento do cotidiano, à sua repetição e ao seu tédio, à banalidade da vida e à superficialidade das pessoas e das relações, é que me anima e me faz levantar da cama pela manhã: a capacidade de crer que milagres, que coisas extraordinárias se operam todos os dias.
 
Há algum tempo, ao ter um encontro que fora muito esperado, eu disse à pessoa que encontrara que, não obstante os contratempos, malgrado o azar ou a ironia do destino que fez com que nada saísse como planejado, mas quase um completo desastre, que eu não iria desistir diante de tal obstáculo, afinal eu o procurara tanto, por tanto tempo. “Procurara e esperara tanto? – escarneceu, cético. “Foi preciso um único clique de um mouse”. Tratava-se possivelmente de uma pessoa que nunca acreditara poder encontrar o que dizia procurar. Talvez não acreditasse em milagres. Talvez fosse antes um fama do que um cronópio. Só talvez, pois seria injusto julgar o que desconheço.
 
De qualquer modo, aquele único clique poderia não ter sido dado. Aquela noite, em vez de ficar em casa eu poderia ter saído para uma caminhada, eu poderia ter ido ao cinema ou ter preferido ler um livro. Aquela noite eu poderia ter passado os meus olhos indiferentes por aquelas palavras que o apresentavam pela primeira vez. Elas poderiam não ter me despertado sentimento algum. Eu poderia ter olhado com desconfiança ou descrença para aquelas imagens nas quais mal dava para divisar feições. No entanto, algo levou-me a dar aquele clique e não outro. Algo também me fez agir diferentemente do modo como eu sempre agira, com mais pressa, com mais avidez, com uma desenvoltura e despudor que roçaram a barra da insensatez, da temeridade e da estupidez pura; agir já não tanto como um cronópio, mas boba como uma esperança.
 
 Não foi então um milagre que pessoas tão distantes geograficamente que talvez de outro modo nunca tivessem se cruzado, se visto, se falado, tenham vivido um momento, ainda que breve, de intersecção?  A coincidência: a incidência em um mesmo ponto do tempo e do espaço virtual. A possibilidade de que aquela aproximação não se desse era infinitamente maior do que a chance de que se realizasse. No entanto, realizou-se em sua raridade e foi descartada como um acontecimento corriqueiro e trivial.
 
Antes de ir a tal encontro, eu ora me alegrava ora me assombrava com caráter extraordinário, receando que era mesmo bom demais para ser verdade. Quando entrei no salão de beleza, a preparar-me, ocorreu-me um fato condizente com a natureza de um cronópio. Uma manicure gritou, chamando a atenção de todos: Cássia, veja a pedra no seu sapato!  Quando olhei, vi que não era apenas uma pequeno cascalho mas uma pedra consideravelmente grande presa estranhamente na curva do salto.  

Estremeci diante daquela pedra que eu arrastava sem me dar conta, num misto de Sísifo e Aquiles, como se fosse um mau presságio. Persignei-me. Era afinal uma advertência? Haveria grandes obstáculos pelo caminho? Eu não deveria, afinal, ter agido como aquele senhor dos óculos e ter comprado estojos acolchoados ou boas joelheiras para me proteger de um tombo iminente? Mas de que adiantaria se os óculos iriam de qualquer modo espatifar-se, se de qualquer forma eu iria quebrar a cara? Sim, no encontro marcado, vi que se interpusera entre meu desejo e sua realização uma grande pedra, talvez intransponível, um arrecife que detinha o fluxo das águas que vieram de tão longe para finalmente banhar a praia.
 
Hoje, relendo Cortázar, suponho que talvez o milagre estivesse não tanto naquele clique, mas antes na sucessão de acontecimentos que precipitaram um encontro desastroso. Quem sabe o milagre ou os desígnios da Providência estejam mesmo, como diz o carinhoso e paciente remetente, sendo escritos por linhas muitíssimo tortas, que ao final confirmarão que vale mesmo a pena acreditar em milagres, por mais improváveis, absurdos e nebulosos que eles nos possam parecer.
 

Comentários

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  • 03.01.2015 14:57 Cássia Fernandes

    Ops. Fui responder seu comentário e fiz uma postagem com seu nome. :) Obrigada, Júlio César. Ainda estou à procura dessa voz e desse estilo, e tento me aproximar deles.

  • 03.01.2015 14:56 Cássia Fernandes

    Não discordo de você, Msamsa. Quem vê a aleatoriedade dos fatos também pode enxergar beleza. Grata por mais essa visita.

  • 03.01.2015 14:54 Júlio César

    Obrigada, Júlio César. Ainda estou à procura dessa voz e desse estilo, e tento me aproximar deles.

  • 30.12.2014 22:34 Júlio César

    Cássia, ao que tudo indica, se sentássemos numa mesa de bar pra conversar assuntos relevantes, discordaríamos em um sem número de coisas. Todavia, não gostaria de deixar passar a oportunidade de dizer que ao ler o seu texto sinto a rara sensação de estar lendo um "eu", um "centro de consciência", alguém de verdade, de carne e osso. Isso tem ficado cada vez mais raro. Não há chavões e, melhor, você, se não achou completamente sua voz, seu estilo, parece estar muito próxima de encontrar (ou aprimorar) Parabéns. Sobre a questão dos milagres, recomendo o texto de Olavo de Carvalho "O que é um milagre". Tenha um ótimo ano novo. Fique com Deus.

  • 10.12.2014 16:05 Msamsa

    Se existem milagres, não sei dizer. Mas certamente existem pessoas que enxergam milagres por toda parte. Eu só vejo a aleatoriedade dos fatos. E isto não me tira "a crença de que há algo de belo a se ver a cada amanhecer, que há sempre a possibilidade de uma surpresa, de um refrigério, de um ser singular e uma idiossincrasia, em meio ao sufocamento do cotidiano, à sua repetição e ao seu tédio, à banalidade da vida e à superficialidade das pessoas e das relações, é que me anima e me faz levantar da cama pela manhã: a capacidade de crer que milagres, que coisas extraordinárias se operam todos os dias". Exceto os tais milagres.

  • 09.12.2014 11:13 Cássia Fernandes

    Obrigada, Nuno.

  • 02.12.2014 18:46 Nuno Cavaco

    Brilhante, Cássia Fernandes! O seu artigo, belo, divertido e acutilante, como sempre, demonstra como é importante educar e exercitar desde a infância para a leitura dos sinais; para tal, o ensino do desenho afigura-se basilar...

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