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Cássia Fernandes
Cássia Fernandes

Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

A lista das coisas mais lindas

Para guardar em seu livro do travesseiro | 03.01.15 - 15:37 A lista das coisas mais lindas .

Goiânia - Já imaginou guardar sob o travesseiro uma caixa com as coisas mais lindas que há na vida ou no mundo, de modo que à noite, quando você mergulhar no sono, imagens, cheiros e sensações se reúnam em um sonho que seja como um videoclipe multissensorial muito bem editado e orquestrado e não aqueles sonhos que são como filmes mal montados que costumamos ter? E não me refiro a ajuntar tesouros a exemplo dos depositados nos túmulos dos faraós, ao brinco de ouro, ao anel de brilhante, aos selfs que você tirou naquela sua viagem fantástica a alguma das sete maravilhas do mundo ou algum ponto afastado e exótico do globo, que faz com que você se sinta uma privilegiada minoria como o primeiro homem que pousou os pés em Plutão. 

Não falo também da lista dos livros que não podem deixar de ser lidos ou músicas que não podemos nos furtar de ouvir, ou cafés, bares, restaurantes e pessoas requintados e afamados que não podem desaparecer sem ser frequentados, vinhos de raras safras, pratos de excêntricos ingredientes. Refiro-me antes à relação daquelas coisas pequenas e insignificantes, à lista das desimportâncias de que falou tão bem Manoel de Barros, um apanhador de desperdícios ou mesmo Cora Coralina, que recolhia o material de sua poesia também nas coisas jogadas fora, nos monturos do Beco de Vila Rica.

Há muito venho adiando a confecção de minha própria lista que incluiria certamente as boninas, aquelas flores que a gente vê nascer nos monturos, de que falava Cora, e que me encantavam desde menina em Pontalina.  Comecei a pensar em tal lista inspirada no Livro de Cabeceira, filme de Peter Greenaway, que costumo chamar de meu filme de cabeceira e por meio do qual conheci o Livro do Travesseiro, escrito no final do século X, início do XI por Sei Shônagon, uma dama da corte imperial japonesa.  O livro era uma espécie de diário guardado dentro da gaveta de um travesseiro de madeira, sobre o qual a autora encostava sua cabeça durante a noite, e que reúne relatos a respeito do cotidiano no Palácio Imperial, descrições sobre os códigos de conduta em tal ambiente, e listas de preferências – um tipo de literatura comum na época. 

 Andei por algum tempo ao encalço de tal publicação. Encontrei-a na internet naturalmente.  Não quis comprá-la por esse meio, no entanto, pois na minha lista das coisas mais lindas eu incluiria um verbete que trataria dos Pequenos Prazeres: encontrar um único exemplar de um livro que se procura há muito tempo. Pois eu o encontrei e tive esse deleite por duas vezes seguidas.  Deparei com ele na livraria El Atheneo em Buenos Aires, muito bem escondido em uma das prateleiras inferiores, quase ao rés do chão, um único exemplar em espanhol, com o título lindo de El Libro del Almohada. Exclamei bem alto: achei! – assustando e provocando o riso de quem estava por perto.

Decidida a presentear um amigo com essa delicadeza, tornei a procurá-lo e me defrontei novamente com um único volume em uma livraria em Goiânia. O egoísmo e minha propensão para colecionadora me impediram de dá-lo, pois é afinal uma edição em português, bonita, mais volumosa, com páginas perfumadas. Ah, sim, no verbete dos Pequenos Prazeres está esse de cheirar os livros, de distinguir seus aromas, suas tintas, texturas, de roçar minha pele neles. A esse hábito somou-se outro de colocar entre suas páginas pequenas tiras de papel com perfume, de forma que quando volto a folheá-los depois de muito tempo descubro um cheiro que me evoca um momento, um lugar, alguém. Roço o nariz e frequentemente os lábios no papel, manchando-o de batom, de modo que se encontrar por aí um livro perfumado e maquiado, devolva-me. 


Destarte, ter livros duplicados também integra esse verbete, assim como abrir aleatoriamente a página deste e de outros, preferencialmente de poesia ou contos, feito fosse um I Ching e encontrar justamente aquele texto que se ajusta ou traduz perfeitamente os acontecimentos, sentimentos ou reflexões do dia. Levava O Livro do Travesseiro comigo tal dia no aeroporto, enquanto o esperava. Eu não sabia se dormia ou se ainda sonhava, se lia ou se folheava o portão do desembarque, no qual se sucediam dezenas de desconhecidos e velozes personagens, pois corria o risco de perder justamente aquele minuto em que, o coração palpitando (compondo meu Livro das Palpitações ou Compêndio das Arritmias), eu o vi atravessar elegantemente o portal da realidade, avançando em direção contrária à minha. Eu sabia que deveria fotografar nas retinas aquele momento para sempre, que nunca mais as mesmas águas iriam compor a mesma onda, nunca mais.... Todavia, o verbete 87 na página 196 fazia meus olhos se deslocarem do portão para o papel, do papel para o portão:
 

É igualmente elegante um homem bonito passar
É igualmente elegante um homem bonito passar portando sua espada cerimonial de lâmina fina presa à faixa de cordão trançado
 

Sim, na lista entram As Tantas Coisas que Nunca Mais, esses instantâneos da vida que é vão tentar embalsamar em fotografais: a grande lua como um ovo gigante que despontava no céu da fazenda Taperão, era uma noite de Sexta-feira da Paixão; o momento em que entrando na livraria em Buenos Aires a borboleta pousou em meu ombro e eu fiquei ali imóvel, contendo a respiração, com receio de que voasse; o choro de meu filho, seus primeiros sons de susto e angústia diante do mundo aqui fora, e o instante seguinte em que o médico o aproximou do meu rosto e em que eu pronunciei o seu nome: Fernando, e ele silenciou imediatamente;  a enfermeira o aconchegando ao meu seio, a vida finalmente ganhando um inédito  sentido, quando seus pequenos lábios instintivamente de meu amor se alimentaram; seus olhos pousados nos meus; o perfume de sua pequena cabeça; o cheirinho azedo de sua pescoço suado; o dia em que ele, tentando imitar a pergunta que eu sempre propunha ao despertar: Fernando, você está feliz?  – ele fez, já não uma pergunta, mas uma afirmação: “Mamãe, você é muito feliz”. Eu e o pai o erguendo no ar, entre nossas mãos entrelaçadas, para atravessar a rua e ir até o restaurante da esquina. 

Aquelas dezenas de pequenas belezas que ficaram suspensas por segundos no ar, como o pombo da crônica de Cecília Meireles:
 

“Houve um tempo em que a minha janela se abria para o chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dia límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.”
 

Os nossos dois corações disparados juntos naquele abraço tão estreito quando cheguei de surpresa ao restaurante dos amigos em Curitiba, aquele abraço, daqueles abraços...

 

... que na vida
a gente dá tão raramente,
aqueles em que, dando, a gente sente
uma mornidão gostosa no peito.
Aquele que parece o fim dos tormentos,
a paz e o sossego,
o sentimento
de estar voltando pra casa.


A imagem nua do homem e sua espada estirados sobre os lençóis brancos esperando-me sair do banho; os movimentos com os quais, imitando Nagiko em O Livro de Cabeceira, escrevi as palavras proibidas nas costas alvas, significado que ele imediatamente decifrou. As palavras mágicas, as palavras tristemente lindas, aquelas que meu padrinho, que morreria pouco tempo depois em consequência do alcoolismo e dos sofrimentos que lhe pesavam na alma, me disse: “Deus te abençoe, mas Deus te abençoe mesmo, minha filha”.  Os sons melancolicamente belos produzidos pelo violino de meu ex-colega de colégio no lançamento de meu pequeno primeiro livro, ele que pouco tempo depois também morreria atingido por um tiro disparado pelo próprio irmão. 

Pois cá estou incluindo também no meio das coisas mais lindas um verbete das Coisas Lindamente Tristes ou Magicamente Trágicas. Mais um passo e começo a listar as coisas suavemente melancólicas ou agudamente dolorosas, como aquela vez em que, encontrando-me com um homem a quem ainda amava já ao lado de sua nova namorada, ele, percebendo que ela se sentira incomodada com minha presença, puxou-a para junto de si e lhe beijou a testa, a testa, logo ali. E a mim, a que era forte, sangrando ferida de morte, com meus ossos inquebrantáveis, quem iria proteger, quem? Não, na gaveta, em nosso livro do travesseiro, na véspera do sono, não devemos listar as recordações que nos maceram a alma, ou nos afundaremos na insônia e na autopiedade, se bem que haja tanta beleza também nas coisas tristes, assim revisitadas pela passagem do tempo e pela poesia da compreensão, da superação ou da resignação. E se bem ainda que de certo modo quando repousarmos a cabeça no travesseiro derradeiro, levaremos as listas das coisas belas, das coisas tristes e das coisas feias. E que às segundas e terceiras se sobreponham as primeiras.

Prosseguindo na enumeração de prazeres e belezas, vejo que essa lista seria por demais longa e pessoal, e que permanece em aberto e incompleta com a expectativa dos dias que ainda restam. São dezenas, centenas, milhares de visões e emoções miúdas, de Coisas que Fazem Transbordar o Coração de Gratidão por estar vivo: os patinhos amarelos que seguem nadando seguindo a mãe em um lago; crianças pequenas, de cerca de dois ou três anos, em fila indiana, umas com as mãozinhas nos ombros das outras; um cão que carrega um pequeno ramalhete na boca, em meio ao trânsito violento da cidade. Pieguices – alguns dirão. Mi mi mi – outros completarão, mas pobres daqueles que tempo não terão para pensar em suas listas, para depositá-las sob o travesseiro, ou que nelas não irão relacionar senão os tesouros que a terra e o sono profundo hão de comer.

 

Comentários

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  • 20.01.2015 07:57 Anônimo

    Reavivou na minha memória o que foi escrito um dia nas minhas costas. Talvez eu colocasse aquela lembrança, por minha vez, na lista dos "momentos que poderiam ter ficado para sempre congelados porque nada do que ocorreu depois foi tão bom quanto aquilo", ou "a vida bem que poderia ter parado ali, e em vez de um filme de final triste, teríamos a mais bela fotografia". Em pensamento, ainda escrevo diariamente nas suas costas: "Eu também!"

  • 06.01.2015 14:10 Msamsa

    Esse é um daqueles textos que faz até um ateu dizer "Meu Deus!". Às vezes é o que resta diante do inefável.

  • 05.01.2015 14:24 Anapaula Meirelles

    Que belo texto Cássia! Tinha que ter vindo de você.

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