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Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

Música clássica

Interpretação histórica da música clássica

| 16.03.15 - 16:41
 
Para ouvir durante a leitura:
Instrumentos de época em Toccata, da ópera L'Orfeo, de Claudio Monteverdi 

 
 
 
 
Goiânia - Ouvir música na época da minha adolescência exigia um verdadeiro ritual. Envolvia, por exemplo, a limpeza do Long Play, o posicionamento da agulha da radiola, e por aí afora. Todas as etapas desse ritual eram realizadas, quase sempre, em um lugar fixo, apropriado, uma espécie de santuário. 
 
Em uma dessas sessões, estreando uma nova aquisição, um LP dos quatro concertos para violino e orquestra da série As Quatro Estações do compositor italiano Antonio Vivaldi (1678-1741), percebi que a melodia estava soando com a afinação do diapasão calibrada abaixo dos habituais 440 Hz ou 442 Hz. Seria uma imperfeição do disco ou um defeito na vitrola? Enfim, após uma breve leitura das informações contidas na capa entrei no universo da chamada “interpretação histórica”.
 
Esse movimento ganhou força a partir do final dos anos 1950, principalmente com Gustav Leonhardt e Nikolaus Harnoncourt, que iniciaram as primeiras gravações buscando uma interpretação musical mais autêntica, mais próxima da concepção original do compositor e das características estilísticas dos períodos anteriores a Beethoven. Diferente da estética dos séculos XX e XXI, pautada nos conceitos românticos de interpretação. 
 
Tal fidelidade é vista por alguns críticos como inalcançável. Do ponto de vista mais prático e menos filosófico, como conseguir se aproximar do significado dado pelo autor e seu tempo, se não havia, por exemplo, processo algum de registro sonoro como referencial? Apenas optar ou não por tocar em “instrumentos de época” como a viola da gamba (viola de perna) ou a teorba (um tipo de alaúde de pescoço longo) afinados com o diapasão em 415 Hz, proporciona uma execução mais “verdadeira” ou mais “honesta”?
 
O renomado maestro alemão Nikolaus Harnoncourt, primeiro a montar uma orquestra “permanente” de instrumentos antigos em 1953, afirma em seu livro Discurso dos Sons, que a escolha por instrumentos modernos ou da época em que a peça foi composta não é o cerne da questão e sim a concepção do intérprete, respaldada no exame da partitura, e na investigação histórico-estilística. Mas, como realizar esta investigação se as partituras, por exemplo, do século XVIII, quase não trazem indicação de dinâmica, fraseado, articulação, etc. 
 
Para uma melhor compreensão do assunto, devemos levar em conta que existe uma grande diferença entre a práxis da intepretação atual e aquela, por exemplo, anterior à criação dos conservatórios de música, após a Revolução Francesa. Naquela época, o músico não aprendia apenas a cantar ou tocar seu instrumento, mas também a interpretar música. 
 
Wolney Unes, um amigo e colega de trabalho, em seu livro Entre Músicos e Tradutores - a figura do intérprete nos orienta nessa questão quando diz que os compositores daquela época não se ocupavam em registrar fielmente suas intenções em suas partituras, já que os músicos e/ou intérpretes profissionais, eram versados na estética musical vigente, na linguagem musical de seu tempo. Concordando com o violinista brasileiro Luis Otávio Santos, especialista na estética barroca, o verdadeiro intérprete tem que ter plena consciência de que não está fazendo uma volta ao passado, e sim criando uma tradição moderna da interpretação da “música antiga”.



A ópera L'Orfeo, de Claudio Monteverdi (completa):
 
Ópera La Favola di Orfeo de Claudio Monteverdi (completa: a partir de 19' 00" - legendas em espanhol)
La Capella  Reial de Catalunya. Gran Teatre del Liceu de Barcelona em 2002.
 Le Concert des Nations. Regencia: Jordi Savall 


Comentários

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  • 07.11.2021 14:17 Claudio Henrique Barbosa Luz

    É possível perceber que para uma boa interpretação da música antiga é preciso análise criteriosa do conceito de reprodução musical, tendo como base o trinômio reprodução musical, interpretação e performance como arcabouço conceitual para o ensino e a pesquisa das práticas interpretativas.

  • 17.09.2021 09:45 DANIEL VIEIRA JUNIOR

    A experiência da execução interpretativa na música se torna mais rica com um estudo histórico do compositor, instrumentação, cultura local, comunidade, sistema religioso e politico na época, etc. Trabalho complicado pensando nas primeiras partituras encontradas. Imagino o trabalho dos tradutores ao encontrarem textos ainda mais antigos.

  • 16.09.2021 17:11 Joicy Pereira de Carvalho

    O desenvolvimento interpretativo para peças Barrocas realmente é um trabalho além de musical e técnico como também histórico, pois trata-se de representar uma música e um estilo que já não são mais usuais no nosso século.

  • 19.12.2016 12:07 Eduardo Fernandes da Fonseca

    Muito bom artigo! Importante conhecer as características do período, estética, não basta somente o instrumento de época,tem que estudar a interpretação.

  • 18.12.2016 22:37 GUSTAVO HENRIQUE

    Literalmente, a interpretação e o dinamismo é algo essencial que todo músico deve ter. Conceitos estes que podem levar o tradicional ao contemporâneo, voltar às raízes da música antiga com um novo olhar. Simplesmente fantástico!

  • 22.09.2016 23:17 Moysés S. Brandão Júnior

    ótimo artigo, precisamos atentar mais para as interpretações.

  • 08.09.2016 14:53 Wanderlei Júnior

    Desde o começo dos meus estudos musicais quando tive o primeiro contato com a dita "música antiga" me fascinei e tive um carinho especial. No festival de Curitiba tive mais intimidade com instrumentos de época e desfrutei da sensação de tocá-los, mesmo que por poucos dias. Assim, vi claramente a importância do estudo de toda nossa tradição musical ocidental, para compreender a música de uma maneira mais ampla, sobre tudo que é feito e reproduzido hoje em dia. É de suma importância haver pessoas especializadas em música antiga, não só no interpretar mas sim no entender no contexto por completo para não só tocar as notas ali escrita, e sim a música como o compositor pensou para aquele momento.

  • 02.09.2016 00:21 Ruth de Almeida Oliveira

    “o verdadeiro intérprete tem que ter plena consciência de que não está fazendo uma volta ao passado, e sim criando uma tradição moderna da interpretação da “música antiga”. “como realizar esta investigação se as partituras, por exemplo, do século XVIII, quase não trazem indicação de dinâmica, fraseado, articulação, etc.” Concordo com o pensamento do violinista Luis Otávio Santos, pois o músico não deve apenas cantar ou tocar algum instrumento sem ter paixão. Percebo que a interpretação histórica da música clássica é muito importante para o nosso crescimento musical, pois com isso nossa área cognitiva cresce de forma que aprendemos cada vez mais o estilo de cada época.

  • 31.08.2016 21:25 Rafael Fagundes da Silva

    Partindo da premissa salientada pelo professor Wolney Unes em seu livro Entre Músicos e Tradutores, o intérprete “deve ser entendido como aquele que torna possível ao leitor comum o acesso a uma determinada obra que se encontra codificada num sistema cujas regras, cujos os símbolos são desconhecidos pelo leigo (ou até mesmo pelo estudioso não treinado).” (1998, p. 14) Com essa ideia de intérprete, unida a questão levantado no texto sobre a “interpretação histórica”, devo concordar sobre a importância de fazer um esforço hercúleo para transmitir ao público o máximo de fidelidade em cada obra, ainda que seja inalcançável tal propósito. Considerável é o fato de ser essa tarefa muito difícil, porém com um embasamento histórico musical profundo e uma ânsia de nós alunos para transmitir ao público essa máxima, seria uma forme de honrar os músicos de terminada época e fazer com nossos contemporâneos se deleitem de uma linguagem tão peculiar e bela.

  • 27.08.2016 20:51 Augusto César

    Critérios importantes para a compreensão da interpretação histórica são revelados no texto. Ótimo para manter o leitor informado sobre o assunto.

  • 05.06.2016 21:54 Pedro Tedesco

    Bem, é realmente interessante o assunto da ''interpretação histórica'', e para quem quiser aprofundar nesse assunto com um ponto de vista mais filosófico, sugiro que leiam o texto que o professor Othaniel nos indicou em sala de aula, ''Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica'' cujo a autora Sandra Neves, disserta sobre as diferentes concepções de interpretação. A ''interpretação histórica'' realizada com a total fidelidade ao seu período histórico, é sem sombra de dúvida, inalcançável. Porém, interpretar a obra buscando a máxima aproximação com o estilo da época, com o intuito de resgatar de forma privilegiada o significado dado pelo seu autor e seu tempo, podem explorar sensações e sentimentos nos ouvintes nunca experimentadas antes. Resta ai, disposição de pessoas a investigar de forma minuciosa o assunto, tema, ideologia, técnicas, sentimentos, cores, timbres, harmonias, ritmos etc, da obra a ser representada. Percebi que esse tipo de interpretação não é fácil e admiro as pessoas que se envolvem nesse movimento.

  • 31.05.2016 14:38 Thaís Meister

    No que se diz respeito a execução musical, uns optam pela liberdade da execução entregue a subjetividade de cada executante, outros pela fidelidade ao autor. Particularmente compartilho da ideia de Sandra Neves, que a obra nasce já como realidade sonora. A interpretação entra como uma valorização do potencial criativo pertencente a natureza da obra sem diminuir a figura do autor. Acredito que revivemos a arte mediante a uma interpretação pessoal, porém, recusando qualquer tentativa de posse exclusiva. A obra deve ser respeitada, lembrando sempre do seu real significado. A “reevocação” das obras para atualidade, nos dá direcionamento e consciência do que possivelmente era executado em determinado período.

  • 20.05.2016 03:46 Victor Euzebio Morgado

    Penso que é válido que exististam as duas formas de interpretação, a que busca uma aproximação das intensões do compositor, e aquela que está sujeita a novas formas de entender e sentir a musica. Uma obra em particular, carrega em si virtudes que trancsendem a notação musical. Estas virtudes a mais, podem ser encontradas nos detalhes de sua execução, na busca cuidadosa de um certo timbre, nos músicos específicamente escolhidos, Estes são exemplos extremos das peculiaridades que encontram o ouvinte tão somente na execução da peça. O compositor da peça seria o maior e mais capacitado intérprete da própria peça. Ele seria a pessoa ideal para rege-la e acompanhar o processo de edição das notações de sua obra Entretanto o problema começa quando, diante da ocorrência de uma apresentação, não há a presença do autor, notações precisas de sua peça, e nem mesmo registros sonoros que pudessem explanar todos os detalhes concebidos pelo autor. Diante disso, podemos pensar duas coisas; que a obra pertence exclusivamente ao compositor. Ou seja, ele, seria o único capaz de autorizar alguém a alterar-la, transgredi-la, mesmo após o processo de composição. Ou podemos pensar que a obra independe de seu autor. Poderíamos considerar que a obra apenas foi gerada por ele, entretanto, ela segue livremente no mundo, sujeita a formas e interpretações diferentes. Diante dessas duas concepções, retomo o meu pensamento, de que a legitimidade de se alterar uma peça não deve se submeter a nada. Há, porém, de se considerar o respeito da relação do autor com sua obra, e as intensões que o intérprete terá com a peça. Creio que todos nós podemos interpretar peças da maneira que bem entendermos. Uns com mais profundidade de valores, outros com menos. Da mesma forma, a opção de buscar uma interpretação mais proxima da intensão do autor, é extremamente valiosa, principalmente quando se trata de peças antigas e com notações pouco específicas. Além de compadecer o compositor, O intérprete tem a chance de lançar luz sobre o passado de uma forma bela e valoroza.

  • 22.04.2016 01:02 Saulo Ribeiro

    Apesar de eu ter 26 anos, passei pelo ritual do Long Play. Certamente me deu saudades. Cheguei inclusive a experimentar a estranheza de tocar em um violão afinado com o aparelho girando o LP em desacordo com afinação. Enfim, me falta muito conhecimento sobre música erudita. Adentrei há muito pouco tempo, Tatyana Ryzhkova, Marcin Dylla e Isabella Selder são os intérpretes de música clássica que escuto. Eles interpretam Villa Lobos, Schulbert, Bach e outros. Suas interpretações me parecem modernas e certamente são capazes de gerar fortes impressões visto que são três grandes expoentes europeus dos dias de hoje. Sinceramente, não tenho uma opinião formada sobre o que seria uma interpretação ideal. Mas certamente concordo com a afirmação do violonista Luis Otávio dos Santos. Precisarei viver mais o universo erudito para saber mais sobre.

  • 10.12.2015 20:52 Renata Rodrigues Alves Bezerra

    "... a escolha por instrumentos modernos ou da época em que a peça foi composta não é o cerne da questão e sim a concepção do intérprete, respaldada no exame da partitura, e na investigação histórico-estilística." Concordo plenamente com o que Nikolaus Harnoncourt disse nesse pequeno trecho. Nós temos que entender que os instrumentos em si não vão nos trazer a música do período barroco, por exemplo. Mas termos a consciência do que acontecia no período, tanto social, cultural, quanto musicalmente, nos dará a base para uma boa interpretação da "música antiga" atualmente.

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Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

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