“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás”. (Gênesis, 3:19)
Goiânia - É muito provável que entre as primeiras reflexões do ser humano, a partir do momento em que ele tomara consciência de si próprio, a morte tenha estado presente. Afinal, se existe uma certeza para todos os seres que nada sabem, esta é de que haverá um fim.
Apesar de ser assunto tabu, a morte é questão explorada por todos os ramos do conhecimento humano. Freud, por exemplo, ensina que há duas grandes energias em cada indivíduo: a pulsão de vida e a pulsão de morte. Elas estarão juntas, presentes, até o fim físico.
O prazer erótico carrega muito dessa contradição: ao mesmo tempo em que o ato sexual é a maior confirmação física de que estamos vivos, há quem considere o orgasmo como “La petit mort” (a pequena morte). Afeto e violência estão sempre de mãos dadas na cama.
Não por acaso algumas pessoas aderem a práticas arriscadas para aumentar o prazer, como a asfixiofilia (a interrupção voluntária da oxigenação do cérebro durante o ato sexual) e o bareback (o sexo sem proteção, geralmente com desconhecidos).
Observa-se que os povos não ocidentais (em um conceito mais cultural que geográfico) lidem de forma mais amena com a morte. Ainda assim, entre eles estão as maiores manifestações concretas de negação do inescapável fim: as pirâmides do Egito.
No mundo ocidental, ora a banalizamos na indústria cinematográfica e no jornalismo sensacionalista, ora a negamos nos excessos da indústria da beleza e sua promessa de juventude eterna, na apologia da vida saudável e nos infindáveis recursos das indústrias médica e farmacêutica, que muitas vezes transformam a luta pela vida em sofrimento inútil.
As grandes religiões têm como maior alicerce o enfrentamento da morte. No versículo 19 do capítulo 3 do livro de Gênesis, o autor sinaliza que a morte é consequência do pecado original – a ambição do homem de se igualar ao divino, ao comer do fruto da árvore do conhecimento.
Em Romanos 6:23 somos lembrados que o “salário do pecado é a morte”. O cristianismo, porém, nos conforta com a dádiva da ressurreição do Cristo.
Para o islamismo, a morte significa a passagem para a vida eterna, que será boa ou ruim dependendo das atitudes na experiência terrena. O kardecismo, por sua vez, explica que a passagem corpórea é apenas um estágio evolutivo do espírito – esse, sim, imortal. Também o budismo, que não tem deuses, crê na reencarnação.
A preservação da vida, portanto, é prioritária, tanto sob um enfoque moral quanto legal – vide legislações contrárias ao aborto e à eutanásia. Neste segundo caso, a manutenção da vida sobrepõe-se, na maior parte das vezes, ao insuportável sofrimento físico e psíquico de uma doença incurável.
Nesse contexto geral de apego incondicional à vida, emerge um personagem controverso: o suicida. Tratado como um pária pelas religiões (não confundindo com o mártir, figura celebrada e santificada), o suicida na maior parte das vezes é visto como um covarde entre aqueles que não têm fé alguma.
Busca-se imediatamente, em relação ao suicídio, uma explicação o mais racional possível. Na melhor das hipóteses, o suicida é um doente – e a depressão costuma ser o melhor dos álibis.
Mesmo a romantizada opção pela morte diante do amor não realizado não obtém o perdão social – exceto pelo legado que tal ato pode deixar, como nas imortais (expressão irônica) narrativas de Goethe ou Shakespeare.
Diante de tal repúdio à morte, poucas experiências podem ser tão transformadoras quanto a consciência da finitude. Venha ela por meio da descoberta de uma doença incurável, um acidente do qual escapamos ou da perda de alguém muito próximo. Após tais experiências, é praticamente impossível escapar de uma série de clichês.
Viralizou há alguns anos um vídeo no qual pessoas no leito de morte relatavam os cinco maiores arrependimentos. São eles:
1) Não ter tido a coragem de fazer o que realmente queria e, sim, o que os outros esperavam;
2) Não ter trabalhado tanto;
3) Não ter tido coragem de dizer o que realmente sentia;
4) Não ter retomado o contato com amigos e
5) Ter sido mais feliz.
São sentimentos clichês exatamente por serem tão verdadeiros. Concluo, por fim, que a pulsão de vida quase sempre se sobrepõe à pulsão de morte, ainda que, no fim, ela prevalecerá. Como dizia Raul na belíssima “Canto pra minha morte”: “Vem, mas demore a chegar / Eu te detesto e amo morte / Morte que talvez seja o segredo dessa vida”.