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Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

Música Clássica

A Orquestra do Terceiro Reich

| 28.11.15 - 09:05
Goiânia - Por onze anos, a Orquestra Filarmônica de Berlim (OFB) esteve submissa ao Estado nazista. O que teria levado esse grupo musical, extremamente orgulhoso de sua autonomia, a tornar-se ferramenta de propaganda do Partido Nacional-Socialista alemão? Alguns poderiam pensar no uso da força. Uma dedução justificada, visto que logo após a nomeação de Adolf Hitler como chanceler, em 30 de janeiro de 1933, o partido instituiu uma política de “alinhamento” dos indivíduos e instituições com os objetivos hitleristas. Contudo, não foi bem assim. Na verdade, a própria OFB tomou a iniciativa de aproximar-se do Governo do Terceiro Reich. Desta forma, a partir de outubro de 1933, depois de 51 anos de existência, esta instituição privada passou a cooperar e barganhar com o regime ditatorial e sanguinário de Hitler até a sua queda em 1945.
 
Esse episódio sombrio da história da OFB encontra-se relatado no livro The Reich´s Orchestra - The Berlim Philharmonic 1933-1945 (Das Reichsorchester, título em alemão), escrito em 2007, pelo canadense Misha Aster (1978). Para esse trabalho, o autor realizou uma minuciosa pesquisa documental em fontes primárias sobreviventes como aquelas encontradas em arquivos governamentais, nos registros da própria orquestra e em coleções particulares de antigos membros da Filarmônica. Foi nessa obra que busquei respostas para uma série de dúvidas sobre o assunto.
 
A busca pela sobrevivência
Tudo leva a crer que o fator ideológico, se existiu, foi o menos importante no processo de aproximação com o Governo do Terceiro Reich.  Na realidade, o principal motivo foi o déficit orçamentário crônico da Orquestra. O modelo comercial adotado desde a fundação, em 1882, era insustentável. Tratava-se de uma associação musical autônoma que, ainda em 1903, se transformou em uma cooperativa, conhecida pela sigla Gmbh. Seus acionistas, os próprios músicos, tinham como principal meta a manutenção de um alto padrão musical. Como consequência, ao longo dos anos, fechar as contas no azul foi uma tarefa quase impossível. As despesas eram muito pesadas, a começar pelo aluguel de sua sede, a Philharmonie. E a principal delas: a folha de pagamento. É fácil entender: os melhores salários para atrair os melhores músicos de fileira, solistas e regentes. Falei um pouco sobre as primeiras quatro décadas de história da Orquestra Filarmônica de Berlim na coluna “50 músicos na pista de patinação”. 
 
Abrir mão da excelência musical cultivada por tanto tempo não estava em questão. Reduzir o número de músicos? Nem pensar. Sobre isso, a administração alegava que seus assinantes estavam acostumados a grandes repertórios que exigiam uma instrumentação completa. Com as dívidas aumentando, não restou outra opção a não ser a busca por socorro governamental.
 
Em algum momento da década de 1920, ainda sem abrir mão de sua autonomia, a Filarmônica passou a receber modestos e esporádicos subsídios do Governo da Prússia, além de uma pequena, porém regular, ajuda da Prefeitura de Berlim. Entretanto, essa ajuda não foi suficiente. A situação financeira da orquestra continuava a deteriorar-se rapidamente. Dívidas se acumulavam, enquanto os salários atrasavam. Usando uma expressão popular: a OFB era um “saco sem fundo”. 
 
Em 1932, para se ter uma ideia, a receita da OFB saldava apenas 40% das despesas. De acordo com uma auditoria posterior, a cooperativa já deveria ter decretado falência ou iniciado os procedimentos legais para sua dissolvência legal. Foi nessa situação que a Filarmônica acabou aceitando a proposta de fusão com a Sinfônica, uma orquestra menor e menos prestigiada, mantida pelo governo municipal. Afinal, a Prefeitura de Berlim era, até então, a principal patrocinadora do grupo. O projeto foi concretizado em 27 de janeiro de 1933, três dias antes de Adolf Hitler (1889-1945) tornar-se o novo Chanceler da Alemanha.
 
O pacto “fáustico”
O alemão Wilhelm Furtwängler (1886-1954) [foto abaixo], regente titular da principal série de concertos da OFB, desde 1922, logo tornou pública sua insatisfação com a citada fusão. A programação politicamente imposta afetava sua “sagrada” liberdade artística. Ademais, sua autoridade ficou altamente comprometida. Dos 23 músicos oriundos da Orquestra Sinfônica de Berlim, pelo menos 6 eram membros do partido nazista, incluído o ex-gerente do extinto grupo, o violoncelista Fritz Schröder; músico que liderou um movimento com o objetivo de ajustar a instituição com os princípios ideológicos do nazismo. Isso incluía, por exemplo, o pedido de afastamento dos músicos judeus, além da secretária particular do maestro, a judia Berta Geissmar. O maestro Furtwängler, por princípios, não admitia em hipótese alguma intromissões políticas em assuntos artísticos.
 
O principal regente da orquestra era uma celebridade na Alemanha. Um ícone muito respeitado tanto por Hitler quanto por Joseph Goebbels (1897-1945), o famoso Ministro da Propaganda nazista. Furtwängler, valendo-se de sua notoriedade e com o consentimento dos músicos e administradores do grupo, em agosto de 1933, procurou as duas autoridades e negociou a reversão da fusão com a Sinfônica, além de uma parceria com o Partido. Seu discurso girou em torno do potencial da orquestra como instrumento de publicidade. Um discurso alinhado com a visão de Goebbels sobre propaganda cultural. Mas o "Ministério Nacional para Esclarecimento Público e Propaganda" não estava interessado em parceria e sim no controle total da melhor orquestra alemã para servir às suas necessidades.
 
Então, em 01 de novembro de 1933, com a “bênção” pessoal de Hitler, a Orquestra Filarmônica de Berlim foi oficialmente declarada uma Reichsorchester. E em 15 de janeiro de 1934, o Ministério da Propaganda, representando o Reich, comprou as participações acionárias de aproximadamente cem músicos, adquirindo legalmente a Cooperativa (Gmbh).

Para Ibaney Chasin, autor do posfácio de Das Reichsorchester, o grupo sobreviveria aos tempos sóbrios do nazismo, mesmo que por caminhos morais infames. Coube ao conjunto nos 11 anos seguintes universalizar a grandeza da música alemã, uma das virtudes da “germanidade”.
 
Abaixo, um vídeo de 1942 com a OFB sob a regência de Furtwängler:
 


Nas próximas colunas, o que mudou no dia a dia do grupo e a situação dos músicos judeus integrantes da Orquestra Filarmônica de Berlim durante o Terceiro Reich.

 
Leia mais sobre a história da Orquestra Filarmônica de Berlim nas colunas:
50 músicos na pista de patinação 
A Orquestra do Terceiro Reich
Judeus na orquestra nazista
 
 
Visite o site da Orquestra Filarmônica de Berlim:
 
* CONCERTOS ONLINE - o Digital Concert Hall oferece concertos ao vivo, em live-streaming, além de um arquivo com apresentações mais antigas e documentários. Funciona na base de assinaturas, com taxa única.

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Comentários

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  • 05.11.2021 13:44 Bolivar

    Nossa que orquestra imensa, nesse video de 1942 da p ver pq era difícil de arcar... Porém a qualidade impecável. Triste ser nazista... Esses símbolos da suástica da até uma vertigem...

  • 18.10.2021 17:16 Camilla de Ávila Mariano

    Infelizmente essa é uma mancha na história da Orquestra Filarmônica de Berlim que ela terá que carregar para sempre. Mas, que esse fantasma do alinhamento com um governo opressor tenha servido de lição, e jamais volte a assombrar a OFB.

  • 17.10.2021 16:06 RAFAEL MARQUES SANTOS

    Interessante, é bem notável que o nazismo não era só uma brecha para poder ser excludente e destilar um odio já existente aos judeus, como também se tornava um mecanismo fácil para interesses individuais como o de Furtwängler que queria ter posse da orchestra ao invés de negociar partições.

  • 19.07.2016 14:25 André Luiz Martins da Silva

    Parabéns texto de muita importância! Podemos ver a diferença no que diz respeito, a planejamento econômico, comparando com a atual situação em que vivemos e nossa sociedade, uma atual crise já é um motivo de corte gastos, sendo assim, a cultura sofre em primeiro lugar porque tratamos o mesmo como algo supérfluo. O texto mostra bem que mesmo com as dificuldades enfrentadas, a Ambiência da Filarmônica de Berlim foi permanecida, o que nos leva a pensar, que como pode um grupo que viveu em uma época de total calamidade econômica e Social , conseguiu sobreviver? Essa resposta, esta no pensamento do povo, na atitude do povo, da cultura do povo, Pois somente eu ou você podemos não tratar a cultura como algo supérfluo. Muito obrigado e Parabéns ao Editor do Texto.

  • 28.02.2016 14:56 Ellias Alves da Silva

    Eu não conhecia sobre essa história da OFB, vários problemas políticos enfrentados pela orquestra, assim como ocorre nas orquestras dos dias atuais eu acredito! Parabéns pelo texto Professor!

  • 19.01.2016 15:40 Deborah Amoroso

    História fantástica. Excelente texto professor

  • 11.01.2016 10:32 Taynara Covas

    Texto excelente!! Nunca tinha imaginado que uma coisa teria acontecido, ainda mais com uma orquestra tão grandiosa como essa.

  • 10.12.2015 23:23 Marina Oliveira

    Parabens pela coluna professor!

  • 10.12.2015 21:25 Renata Rodrigues Alves Bezerra

    Realmente não tinha o conhecimento sobre tudo o que a Orquestra Filarmônica de Berlim teve que passar com o regime nazista no poder. E como se diz, cada um se vira com as armas que tem. Eles tiveram que recorrer ao governo porque precisavam, e não por motivos fúteis. Parabéns professor pelo maravilhoso texto!

  • 08.12.2015 14:41 Thaisa Graciele Rodrigues

    Cada dia mais encantada com a história! Nunca imaginei que um dia poderia ocorrer algo parecido!

  • 08.12.2015 11:25 Breno Teles Pereira

    A matéria sobre a Reichsorchester deixa claro a questão da formação de identidade do povo alemão sob a ótica musical, caminhando para o arianismo; a exclusão de membros judeus e outros povos considerados como "não puros" foi um processo vagaroso, o qual grande parte do povo alemão tomou partido. É perceptível, dessa forma, o nacionalismo crescente em conjunto com a possível pergunta: "o que é ser alemão?" Como pode ser visto no documentário "Arquitetura da Destruição", de Peter Cohen (1989), a busca pela estética perfeita e o gosto grandioso por arte em geral, de Adolf Hitler, demonstram clareza na questão da apropriação da Filarmônica para servir aos propósitos de propaganda e engrandecimento do Estado nacional-socialista. Hitler, por exemplo, ao invadir Paris, admira-a e proíbe a destruição de seus grandes monumentos, reafirmando assim seu gosto por arte; no documentário, também percebemos a apropriação de inúmeras obras de arte dos países invadidos, típica demonstração de apropriação cultural. Não sei como tal ressignificação e apropriação se deram na música, mas o palpite seria que a maior parte da programação musical fosse baseada em Richard Wagner (1813-1883), maestro e compositor favorito de Hitler.

  • 03.12.2015 21:24 Daniela Vieira

    Ótimo texto! Desconhecia esse momento sombrio da relação da Orquestra Filarmônica de Berlim com o regime nazista. Aguardando a próxima coluna para saber a continuidade destes fatos.

  • 01.12.2015 11:09 Lucas Dourado

    Texto muito interessante! Parabéns Othaniel!!!

  • 30.11.2015 12:46 Luciane Ucella

    Gostei muitíssimo do texto, e enquanto lia fiquei lembrando, que também, usarem o cinema como publicidade para seu governo nazista. Eles aproveitaram e usaram todos os meios artísticos, para ludibriar uma nação inteira, muito triste.

  • 29.11.2015 21:58 Ana Elisa

    Excelente matéria. Está de parabéns.

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Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

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