“Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela (...) Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade”.
Chaplin
Em 1968, o diretor norte-americano Stanley Kubrick e o escritor britânico Arthur C. Clark apresentaram HAL 9000 ao mundo. O contexto era da corrida espacial e, lançado um ano antes da chegada à lua, 2001: Uma odisseia no espaço especulava, entre outras coisas, sobre a possibilidade de as máquinas superarem a inteligência humana. HAL 9000 concretizava nas telas um sentimento paradoxal: ao mesmo tempo em que busca se distanciar do Criador, o homem teme sucumbir diante de suas próprias criações.
Essa relação ambígua remete às origens. Na narrativa bíblica (Gênesis 4;22), o primeiro mestre do cobre e do ferro vinha de uma linhagem maldita: tetraneto de Adão, Taulbacaim era trineto de Caim, o primeiro homicida e fratricida, e filho de Lameque, o primeiro bígamo.
Na Ciência, a forja de ferramentas representa importante distinção do gênero Homo em relação aos demais hominídeos, porém, conforme Yuval Noab Harari ressalta no best-seller Sapiens: Uma breve história da humanidade, “a confecção de ferramentas é insignificante se não estiver associada com a capacidade de cooperar com muitas outras pessoas”. Essa capacidade cooperativa, portanto, é que distinguiu os sapiens dos neandertais, erectus e outros.
Em Fedro, Platão (427-347 a.C.) conta que o deus egípcio Thot, ao apresentar sua nova criação, a escrita, ao rei Tamuz, recebe tal advertência: “Uma coisa é criar as artes, outra é julgar em que medida trarão malefícios”. O receio era de que o registro escrito viesse a deteriorar a capacidade de memória e raciocínio – qualquer semelhança com as discussões atuais sobre os efeitos do Google na mente humana não são meras coincidências.
Um intrigante experimento do pioneiro da computação Gordon Bell explorou as possibilidades da terceirização da memória. Ininterruptamente, registrava com uma microcâmera cada passo de seu dia e fazia backups de tudo o que lia. Para o pesquisador, dessa forma o cérebro se libertaria da penosa tarefa de armazenar dados e seria possível evitar as armadilhas da memória humana, muitas vezes inventiva demais, ao ponto de ter como verdade o que não passa de fantasia. A experiência está registrada no livro O futuro da memória (2009/ Editora Campus).
Das savanas africanas ou do mundo caído bíblico até a sociedade em rede a relação homem-máquina se tornou mais simbiótica. Máquinas autônomas ocupam espaço no cotidiano de forma quase onipresente. Veículos que dispensam o motorista já são realidade e não tardará o dia em que a Carteira de Habilitação será peça de museu. Pequenas engenhocas levadas no bolso conhecem seus hábitos tal como o Deus onisciente conhece seu coração. Sabem o que você come, com quem fala, por onde anda, como estão as batidas de seu coração e as músicas que gosta. Substituem sua memória, lembram do aniversário dos amigos e parentes, alertam que chegou a hora de tomar o medicamento – e qual a dose certa.
Entusiastas acreditam que essa simbiose livrará o ser humano de tarefas árduas, como o trabalho manual, que ficaria sob responsabilidade das máquinas, liberando-o para atividades prazerosas, como a contemplação das artes. Outros enxergam nessa dependência tecnológica uma escravidão contemporânea – já que as fronteiras entre o ambiente de lazer e o de trabalho foram rompidas.
Não é o caso de defender o ludismo, movimento do século 18 que lutava contra a mecanização da indústria têxtil, mas é bom nunca esquecer das palavras de Chaplin: “Não sois máquinas! Homens é que sois!”