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Carol  Piva
Carol Piva

Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

BRASIL CENTRAL, PATRIMÔNIO DA GENTE

O desenhador de destinos

| 25.06.17 - 15:26

(Ilustração: Gugão)

Pela terceira vez, na mesma semana abarrotada de cumprimentos e esperanças retintas, ele voltava para casa sem nenhuma explicação justificativa.
 
Vinha zanzando a cidade desde segunda-feira, sol lancinante, ônibus esbaforido na ida, durante, e vice-versa. Diariamente, pelo menos era serviço que não parava mais. Tudo quase sempre escasseava em casa: o arroz com feijão, dinheiro para água e luz, a paciência, as energias. Tinha feito umas encomendas fiadas e, não recebesse logo naquela semana, nem sabia mais, deusdocéu... Pois assim ia prosseguindo, num corre daqui, outro dali. E, no de normal, a vida.

Josué, quarenta e oito de existência, três anos já sem emprego fixo. Foi quase a vida toda frentista do Posto Boa Viagem, emprego bom, pagava direitinho, fazendo vale se precisasse. Mas daí: pegou moléstia tão ruim que o impediu de continuar em serviço.
 
Diagnosticaram: perda difusa da sensibilidade visual. O posto, primeiro, sem poder demitir, encostou o homem tanto quanto pôde pelo INSS. Depois, Josué considerado apto de novo ao trabalho, foram fazendo lenga-atrás- de-lenga. Resultado: mandaram o coitado embora, vencido o período obrigatório de espera pós-licença.
 
Não que a vista embaralhasse, não. Só não distinguia mais as cores. E, com o tempo, passou a ver só azul. Cruzcredo, uns diziam, e que não era nem trem de Deus-aquilo, não. Para Josué, no afinal, era coisa de ser humano mesmo, pois-ora! Enxergava em tim-tins, só que para tudo o que olhasse via azul. Teve lá seus preliminares embates com a doença porque gostava muito de desenhar, desde em menino, e então achava que para quem desenha ver colorido era importante. Mas foi-se acostumando, se acostumando, se acostumou. Fim das contas, era nada-assim-tão demais...

Certo é que, por conta disso, dali em diante vinham sendo três anos só de bicos. De entregador-bicicleteiro a vendedor em semáforo. Boa notícia foi que, passado um tempo, um conhecido seu lhe arranjou bico dos bons, quase um emprego, Josué.
 
— Acompanhador de adivinho? Mas que diabo terei que fazer, Agenor?
 
— Não é bem acompanhar... É que o homem está velhinho, já não enxerga. Só precisa de alguém para tomar nota das adivinhações que faz dia de segunda, quarta e sexta.
 
E era só mesmo, porque mal palavraria com o adivinho...
 
— Ele paga cem reais por dia de trabalho. E paga certinho, por mês. Se você pegar...
 
Claro que Josué pegaria. E foi lá fazer serviços ao seu Osório. De começo achou estranhíssimo. A pessoa entrava na salinha empurrando o lençol dependurado como cortina, sentava no banco de madeira, e o homem fechava os olhos, punha a mão direita na nuca, pensando-pensando... Depois saía com as suas todas adivinhações sobre a pessoa. Josué só punha sentido, tomava nota, endereçava e entregava.
 
Foi assim, direitinho, por dois meses. Num dos dias do terceiro, seu Osório mandou entrar a primeira pessoa. Fez o de sempre. Mas nada de adivinhar. Pelejava. Nadinha. Chamou, então, Josué num canto e foi logo segredando:
 
— Agora lascou, menino. Parece que estou impedido... O que é que você sugere?
 
— Eu... sugerir? Nada, não, senhor.
 
— Me socorre, pelamordedeus...
 
— Uai, fazer o quê, o senhor não está conseguindo... Nem se a gente desenhasse...
 
Josué tinha dito aquele “nem se a gente desenhasse”, é claro, para que o adivinho se convencesse do beco sem saída em que estava e talvez...
 
— Se a gente desenhasse? Você sabe desenhar, rapaz?
 
— Até que sei, mas por que é que o senhor...
 
— Minhanossa, é isso, vamos desenhar os destinos... — o adivinho nitidamente delirava, Josué pensou. Mas, no urgente da hora, consentiu.
 
E foram as pessoas todas, dali em frente, entrando na salinha. O adivinho fazia um preâmbulo, explicava que, devido ao cansaço dos anos e da modernidade de hoje, tinham decidido não mais adivinhar por adivinhar. Senão: seguir a corrente. E, nisso, Josué tinha-se transformado em desenhador de destinos, tornando-se ambos os primeiros a oferecerem este tipo de serviço... no país, sim, no país.
 
A pessoa entrava e contava as pendengas. O adivinho escutava. Josué, também. E, de auxiliador, passava a auxiliado. Mas não adivinhava nem fazia previsões. Era coisa como se... como se... Coisa de transver. Pegava papel, caneta, lápis, canetinhas. E desenhava. O adivinho, no fim, lia o desenho, explicava. E a pessoa saía dali satisfeita da vida. Depois, com a aposentadoria do adivinho, Josué passou a trabalhar sozinho. Viu que nem tinha lá necessidade de explicar os desenhos nem- nada, era até preferível. E, adiante, viu também que nem precisava que as pessoas pedissem desenho específico. Mesmo o olho vendo azul, ia só desenhando, fazendo a vida...

* Gugão presenteará nossa coluna, daqui em diante, com um desenho ou caricatura. Ele é mestrando em Arte e Cultura Visual na UFG, professor de Artes Visuais pela Seduce, Regional de Aparecida. Divulga seus trabalhos de forma independente através de seu perfil no Facebook: facebook.com/luisaugustoplp. E-mail: prosqueneo@gmail.com.

Comentários

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  • 04.07.2017 17:19 Germano Viana Xavier

    Opa-azulidões!

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Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

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