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Violência no trânsito

Pedestres vulneráveis: vítimas e vilões da imprudência

Mortes por atropelamento aumentam em Goiânia | 10.12.14 - 10:08 Pedestres vulneráveis: vítimas e vilões da imprudência Apesar do sinal vermelho para pedestres, várias pessoas arriscam a vida em travessia no centro da capital. O flagrante foi registrado na terça-feira (9/12) (Foto: Mônica Parreira/A Redação)
 
Adriana Marinelli e Mônica Parreira
 
Goiânia - Livros empilhados na prateleira, cama feita e sapatos pelo chão. O quarto de Jéssyca Nunes, de 23 anos, permanece como estava no dia em que ela foi para a faculdade e nunca mais voltou. Para Margareth Nunes, de 43 anos, é como se a filha fosse chegar em casa a qualquer momento. "Às vezes acordo esperando ela me chamar", confessou, em lágrimas, ao detalhar como enfrentou o último dia 4 de agosto, quando perdeu a caçula em um acidente de trânsito.
 
Na noite daquela segunda-feira, Jéssyca deixava a Universidade, no Jardim Goiás, em Goiânia, quando foi atropelada na faixa de pedestres. A estudante chegou a ser socorrida e levada para o Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo), mas acabou morrendo horas depois.

Ambulâncias chegando às pressas com vítimas da violência no trânsito já fazem parte da rotina na unidade de saúde. De janeiro a setembro deste ano, o Hugo recebeu 7.627 pacientes enquadrados no perfil. Atropelamentos provocaram 889 dos casos, média de 3,2 por dia.
 

Com a morte da filha, Margareth encontra forças na neta para seguir em frente (Fotos: Leo Oliveira/A Redação)
 
O acidente que matou Jéssyca também atropelou planos profissionais e deixou na família uma lacuna difícil de preencher. Mesmo perdendo a filha, Margareth teve que aprender a ser mãe novamente, da noite para o dia. É ela quem cuida da neta, a órfã Ana (nome fictício), de apenas 4 anos. "Agora somos só nós duas na casa. A Ana me dá forças para seguir em frente", resume. 
 
"Faço terapia até hoje, por mim e pela minha neta. Acho que ajuda a lidar com a ausência da Jéssyca. Nunca entendi a morte da minha filha." (Margareth Nunes)

As constantes visitas ao psicólogo já entraram no dia a dia de Margareth. "Faço terapia até hoje, por mim e pela minha neta. Acho que ajuda a lidar com a ausência da Jéssyca, e isso reflete no comportamento da Ana, que não chora mais com tanta frequência". O auxílio foi necessário para Margareth evitar os "porquês" que a perturba. "Nunca entendi a morte da minha filha. Acho que quando as coisas têm de acontecer, elas acontecem, não tem como ficar procurando explicação, né?", completa. 
 

 
Conforme relembra a mãe, a estudante era cautelosa na hora de atravessar as ruas. "Ela sempre teve muito medo. No dia do acidente mesmo, a Jéssyca estava na rua com a irmã e acabou ficando para trás na hora de atravessar. Minha outra menina até brincou, dizendo que ela não podia ser tão mole. Aí à noite recebo uma ligação dizendo que ela foi atropelada na faixa de pedestres. É triste demais."
 

Adjunto da Delegacia Especializada em Investigação de Crimes de Trânsito (DICT), o delegado Davi Freire Rezende ressalta que acidentes como o que causou a morte de Jéssyca são os mais chocantes. "O pedestre está tentando fazer a coisa certa e o motorista não respeita", comenta.

Até o dia 25 de novembro deste ano, a delegacia registrou 240 mortes em acidentes de trânsito na capital, sendo 82 pedestres. Destes, 74 estavam em via pública, cinco na faixa de segurança e três na calçada. O número de óbitos por atropelamento no mesmo período do ano passado foi 53.
 
As estatísticas da violência no trânsito são ainda mais alarmantes em nível nacional. Levantamento da Seguradora Líder-Dpvat feito no primeiro semestre de 2014 aponta que quase 67 mil pedestres se envolveram em acidentes, resultando 43 óbitos por dia no Brasil.

Os números da imprudência pautaram a Semana Nacional de Trânsito - realizada entre 18 e 25 de outubro -, que teve como foco a proteção e prioridade a quem anda a pé. “As pessoas precisam lembrar que todos são pedestres em algum momento do dia. É preciso respeitar a parte mais frágil quando se está dirigindo”, orienta o delegado Davi Freire.
 
Avaliar o responsável pelos acidentes não é tarefa fácil, mas faz parte do trabalho da DICT. Provocar morte por atropelamento é crime que resulta até quatro anos de prisão, o que pode acontecer com a condutora de 26 anos que atingiu Jéssyca por não respeitar a faixa de pedestres (até o fechamento desta reportagem, o inquérito ainda não havia sido concluído).

Diante do elevado índice de mortes no trânsito de Goiânia, o delegado informa que há uma tendência no perfil de condutores que se envolvem em acidentes. "É comum ver pessoas entre 18 e 26 anos nas ocorrências de óbito por dirigirem alcoolizados ou com excesso de velocidade. Geralmente o causador de casos como atropelamento também é jovem", argumenta.

Um dos casos mais recentes aconteceu no dia 17 de novembro, quando um casal de idosos caminhava pelo Jardim Novo Mundo. Um senhor de 65 anos acabou morrendo ao ser atingido por um veículo que invadiu a calçada. A polícia informou que o condutor, de apenas 22 anos, estava alcoolizado. 

Mas há também o outro lado da história. De acordo com Davi Freire, muitos são os casos em que o próprio transeunte é responsável por provocar o atropelamento. 


Mesmo a poucos metros da faixa, pedestres preferem disputar espaço com veículos (Foto: Mônica Parreira/A Redação)

“Percebemos um número muito elevado de acidentes em que o pedestre está atravessando em locais inadequados. Geralmente se trata de pessoas idosas, que às vezes não têm mais tanta noção de tempo e espaço e acabam fazendo uma travessia perigosa”, justifica ao relembrar o caso de um homem de 60 anos que morreu atropelado por um ônibus na Avenida Paranaíba, Setor Central, no início de novembro. "Ele se aventurou entre os carros, a poucos metros da faixa, e acabou morrendo".
 

Parecia uma noite comum, mas o comerciante Orivaldo Fernandes Borges, hoje com 64 anos, teve sua rotina alterada tragicamente em 10 de março de 2012. O goiano estava no Pará quando foi atropelado por uma motocicleta sem farol conduzida por um homem alcoolizado. "Foi uma mudança de 360 graus. Nossa família ficou totalmente abalada e desestruturada", conta Rosana Borges, filha de Orivaldo. 
 
O comerciante, hoje com a memória comprometida, trabalhou duro a vida inteira para proporcionar conforto à esposa e aos quatro filhos mas, em função do acidente, precisou interromper seus planos. "Meu pai estava concluindo a travessia da rua quando foi atropelado. Depois disso, recebemos uma série de notícias ruis. Dois médicos chegaram a dizer que ele não sobreviveria", diz Rosana.
 
Orivaldo foi submetido a 13 cirurgias, sendo seis na cabeça. Durante cinco meses, o comerciante conseguiu mexer apenas os olhos. "Foi uma alegria sem tamanho quando o vi movimentando a mão pela primeira vez", lembra a filha, que recebeu a reportagem do jornal A Redação durante uma sessão de fisioterapia do pai no Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), em Goiânia.
 
"Sem plano de saúde, precisamos vender bens que meu pai construiu a vida inteira para conseguir pagar o tratamento dele." (Rosana Borges)
 

Arquivos de família mostram Orivaldo antes e depois do atropelamento.
À direita, filhas o acompanham durante fisioterapia no Crer (Fotos: arquivo pessoal e A Redação)
 
Além do déficit de memória, o até então chefe da casa passou a ter dificuldades para falar, andar e agora é o centro das atenções e cuidados no lar. "Gastamos muito. Sem plano de saúde, precisamos vender bens que meu pai conquistou para conseguir pagar o tratamento dele". Logo após o acidente, Orivaldo foi transferido para Goiânia, onde permaneceu internado por vários meses. "Somente na unidade hospitalar da capital goiana gastamos mais de R$ 800 mil", revela Rosana.
 
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que quase metade das vítimas de trânsito estão em situação vulnerável, como é o caso de pedestres, ciclistas e motociclistas. E, segundo o Ministério da Saúde, 45,34% das pessoas vitimadas no trânsito têm entre 15 e 39 anos, ou seja, estão em idade produtiva e contribuem de forma expressiva no mercado de trabalho.

Mesmo fora dessa faixa etária, Orivaldo deixou de contribuir com a renda de casa, desestruturando a economia familiar. "Foi muito difícil. Precisamos nos adaptar à rotina. Minha mãe, por problemas de saúde, também não podia mais trabalhar para cuidar dele. Eu e minha irmã assumimos o papel de enfermeiras, tivemos que abandonar o trabalho", complementa a filha.
 

Além da memória, comerciante teve movimentos comprometidos (Foto: Mônica Parreira/A Redação)

Se os custos para as famílias de vítimas de acidentes são altos, para os cofres públicos não é diferente. É crescente o número de indenizações pagas pelo Seguro por Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT). Segundo estatísticas da Seguradora Líder DPVAT, que administra o seguro no Brasil, o Estado de Goiás responde por quase 5% das indenizações por morte pagas pelo seguro no país no primeiro semestre deste ano.

Se considerado apenas a região Centro-Oeste, Goiás é responsável por 47,18% das indenizações, quase a metade, enquanto o Mato Grosso, que aparece na sequência, responde por 27,77%.
 
Ainda segundo dados da Líder DPVAT, somente no primeiro semestre deste ano o seguro pagou no país R$ 1,77 bilhão em despesas com indenizações por morte, invalidez permanente e reembolsos de despesas médicas hospitalares (DAMS), em favor de mais de 340 mil vítimas de acidentes de trânsito ou a seus beneficiários. A quantidade, conforme estatísticas da seguradora, é 14% maior do que a registrada no mesmo período de 2013.
 
 
Conter a violência que envolve pessoas e veículos, bem como suas consequências econômicas e sociais é, para o engenheiro de trânsito Benjamim Jorge Rodrigues dos Santos, uma tarefa que exige planejamento e ação. Especializado no assunto, o também professor universitário elogia o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), aprovado em 1997, mas critica a forma como a lei é tratada. “Falta trabalhar mais os pilares do trânsito, que são fiscalização, engenharia e educação”, resume.
 
Estatísticas da Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade (SMT) apontam que de janeiro a outubro deste ano foram aplicadas 102.493 autuações em Goiânia.

Desrespeito à faixa exclusiva de ônibus, excesso de velocidade e avanço de sinal vermelho estão entre as infrações mais recorrentes. Parar sobre a faixa de pedestres é a 5ª ação que mais gera multas na cidade. Ainda assim, conforme analisa Benjamim Jorge, a fiscalização na capital é insuficiente. "Motoristas são negligentes especialmente em locais onde sabem que não há reforço fiscal. Precisamos de mais sensores de velocidade, por exemplo. Não impede a infração, mas certamente reduz os índices, o que interfere na ocorrência de acidentes", diz.
 

Engenheiro de trânsito, Benjamim Jorge fala sobre sinalização na capital (Foto: Mônica Parreira/A Redação)

A evolução da frota de veículos na capital aponta que havia 800.681 circulando em Goiânia no ano de 2010. Atualmente, o número é de 1.131.409. “O ideal é um agente de trânsito para cada mil veículos, o que nos leva a entender que seriam necessários ao menos mil profissionais, quando na realidade há em torno de 300 atuando”, explica o engenheiro. “Faltam agentes municipais não só para aplicar multas, como também para orientar e auxiliar a fluidez, evitando até o estresse ao volante”.
 
Assim como a carência de material humano, Benjamim Jorge aponta problemas recorrentes na engenharia de Goiânia. Segundo o profissional, a sinalização deveria ser mais acessível. “É um ponto que está deixando a desejar. As faixas de pedestres precisam de manutenção a cada seis meses, mas várias não recebem pintura há anos”, critica.

Procurada pela reportagem, a SMT informou que já iniciou uma força-tarefa para reforçar a sinalização horizontal da cidade, mas não especificou quando os trabalhos serão concluídos.
 

"Estamos verificando o aumento do número de acidentes envolvendo pedestres em Goiânia. O excesso de velocidade e a falta de planejamento no fluxo tem contribuição nisso, mas também estamos falando de condutores mal educados, que não respeitam a preferência da parte mais frágil, e de pessoas que não sabem sinalizar da forma correta quando querem atravessar a rua, ou atravessam de qualquer jeito. O princípio básico é a educação", conclui o engenheiro de trânsito. 
 

Tramita na Assembleia Legislativa de Goiás um projeto de lei que prevê a inserção de simuladores de direção e educação de trânsito na rede pública de ensino do Estado. Segundo a matéria, proposta pelo deputado Marlúcio Pereira (PTB), os equipamentos seriam utilizados para viabilizar as aulas de educação de trânsito, que passariam a fazer parte da grade curricular. Apesar de não ser cumprida, a obrigatoriedade da disciplina nas escolas é prevista no CTB.
 
“Formar crianças e adolescentes em adultos mais responsáveis nas pistas é importante pois, por meio delas, chegamos aos seus familiares que também se sensibilizam para os perigos no trânsito", justifica o deputado.

Enquanto a ideia não é discutida, o Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO) deu a largada para um projeto educativo que atinge bons resultados. Pioneiro no país, o Detranzinho, idealizado pela gerente de educação para o trânsito do órgão, Priscila Carandina, tem realizado atendimentos a crianças e adolescentes de todo o Estado.
 

Projeto pedagógico criado pelo Detran-GO mostra bons resultados (Foto: Detran)
 
Iniciado em setembro de 2013, o projeto já alcançou mais de 18,6 mil pessoas até o início de novembro deste ano. Segundo Priscila Carandina, o Detranzinho, que conta com duas unidades móveis que percorrem o Estado, objetiva sensibilizar os alunos das redes pública e privada de ensino a praticarem e multiplicarem seu conhecimento, de modo a incentivar comportamentos seguros no trânsito por meio da metodologia do Aprender Fazendo, da Lego Education.

"Quando nós chegamos na gerência do Detran, percebemos que o foco era, na maioria das vezes, o condutor. Mas percebemos que não podemos trabalhar de forma educativa com crianças considerando a possibilidade delas se tornarem condutoras, até porque pode acontecer de algumas delas nem se habilitarem no futuro. Sendo assim, temos que protegê-las considerando o momento que elas vivem agora. Se essas crianças são pedestres, são passageiras, temos que dar palestras sobre o que é certo e o que errado na realidade que elas vivem atualmente", explica a gerente de educação para o trânsito ao destacar o que motivou a implantação do projeto.

"Os alunos são estimulados a construir uma cidade, focados na busca por soluções para maior segurança, acessibilidade e fluidez no trânsito." (Priscila Carandina, gerente de educação do Detran-GO)

No Detranzinho, que conta com dois micro-ônibus adaptados com atividades pedagógicas, o trabalho é iniciado com uma palestra, na qual os alunos recebem orientações sobre segurança e legislação de trânsito. Depois que uma mini cidade é montada, os alunos são convidados a guiar um carrinho de controle remoto na maquete construída com blocos de montar. O projeto tem dado tão certo que já conta com atividades agendadas até abril de 2015.

"Ver essa ideia na prática é mesmo a realização de um sonho. Nosso objetivo é aprimorá-la ainda mais nos próximos meses", garante Priscila.

Os resultados do trabalho estão na dissipação das informações. "Os alunos são estimulados a construir uma cidade, focados na busca por soluções para maior segurança, acessibilidade e fluidez no trânsito", explica. "A criança passa a conseguir identificar o pai, a mãe ou o responsável em atitudes corretas ou não. E aí ele se torna um multiplicador o que, na visão do Detran-GO, é o principal fundamento da educação no trânsito", finaliza.


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