Goiânia — Você tem medo da morte?
— Eu tenho!
Esse é o diálogo curto e sincero que cada um de nós provavelmente teríamos conosco mesmos, em silêncio. Diálogo simples, como são os mais sinceros. Sem rebuscos de uma erudição filosófica. Somente a simples realidade das coisas.
A morte tem sido, por eras, objeto de angústia e medo. Cada um a vivencia de forma diferente: com receio ou tranquilidade, com horror ou esperança. Mas tudo isso acaba se tornando secundário, porque a nossa sociedade faz questão de adiar a morte e seus sinais na velhice e no adoecer. Tenta fugir da morte com o metafórico elixir da vida eterna, esquecendo que ela nos ensina muito. Pensemos: se não morrêssemos, cuidaríamos uns dos outros? Provavelmente não, porque as pessoas ficariam logo bem! Se fossemos imortais, aproveitaríamos cada dia para nos tornarmos melhores? Possivelmente não, porque poderíamos adiar o aprendizado para outro dia, já que não há limites. Não seríamos uma espécie solidária ou responsável. A consciência da morte nos faz termos a consciência da vida.
Basta vermos o cenário atual com COVID-19. À medida que temos mais casos de pessoas doentes, mais vemos atos e gestos de comunitarismo e cuidado com o outro, mais pessoas demonstram sua responsabilidade pessoal e coletiva. O filósofo Max Scheler diria mesmo que a morte representa “uma carga invulgar e universal do estado de ânimo presente”. A finitude que a morte nos proporciona de forma natural é um muro distante que nos permite guiar as nossas vidas com responsabilidade.
Já a velocidade torrencial de notícias parece acelerar o carro de nossas vidas em curso de colisão com a morte. A responsabilidade gerada pela existência da morte é substituída por “nada mais importa, vou morrer mesmo”. Ideias como “não é se mas quando você contrairá a doença que mata” são tão graves quanto “não é nada, não nos matará”. Os dois extremos mantêm nossa vida física, mas levam-nos a uma morte mental, nos arrastando a cada dia: zumbis em atitude provisional, como citava aqui.
E por quê?
O ser humano que surge da Europa do Séc. XIII substitui atos quase voluntários originados de suas necessidades vitais, pelo impulso de trabalho pela remuneração. E poder torna-se sinônimo de riqueza. E famílias, clãs e grupos étnicos são substituídos por grupos de classes sociais político-jurídidas unidas em função de uma estrutura econômica. Consequência: pensar torna-se calcular, e todos nos tornamos parte de uma grande engrenagem que sustenta o mercado. Scheler diz que “tal tipo afirma que qualidades, formas e valores ‘não são reais’, são subjetivos e arbitrários” e que coragem passa a ser um risco apenas dos aventureiros. “O mundo não é amado e contemplado, mas aquilo que deve ser avaliado e trabalhado”.
E aí surge uma nova atitude perante a morte: não se teme a morte, talvez simplesmente se negue. E ao negá-la, nega fatos, ciência e especialistas. Uma artimanha para ocultar sua “consciência profunda da indignidade de ser e do desespero metafísico que possui”. E a morte deixa de ser temida: é substituída por cálculos; as pessoas por números e o mundo real pelo mundo econômico.
Este é o ser individualista que as filosofias e religiões do mundo temem. É o ser que perde sua imagem social perante os outros e, mais grave, não percebe que perdeu a si mesmo de si mesmo. E para fingir que nada está ocorrendo, age como se fosse intocável, um corpo fechado, porque são os outros que morrem e não ele. E se acha que não morre, torna-se irresponsável e egoísta na caminhada. Só que… ele morre! E da mesma forma que os outros são apenas “os outros”, irrelevantes, quando a sua morte chega, ele é “o outro”. “Este novo tipo vive, literalmente ‘no dia a dia’, até que de súbito, estranhamente, já não há mais um novo dia”, como lembra Scheler.
Ele viveu na ilusão lendária da imortalidade, mas a realidade continua batendo-lhe à porta.
“Uma vara, dentro da água permanece quebrada, mesmo que eu saiba que está inteira. Uma ilusão, positiva ou negativa, permanece, quer eu julgue que o assunto em questão é real ou irreal, quer eu conte com ele quer não”. Talvez o que Max Scheler nos tenta dizer é que a verdade continua sendo verdade, quer goste ou não. E cuidado, solidariedade, consciência e responsabilidade são virtudes inatas, ainda que nos queiramos esconder por trás de uma ilusão social criada há 800 anos.
A responsabilidade pela vida e morte de cada um é de todos. E que nosso próximo diálogo interior seja assim:
— Você tem medo da morte?
— Eu tenho medo da vida irresponsável.
Sam Cyrous é psicólogo (CRP 09/8178), logoterapeuta, psicoterapeuta de casais e família, StoryTeller e curador do TEDxGoiânia