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Adalberto de Queiroz

Simpósio 200 Anos de Dostoiévski: Um marco na cena cultural goiana

| 15.09.23 - 09:52 Um jovem se apressa ao entrar no Teatro do Sesc/Centro, em Goiânia, na rua 15, esquina com a 19 no dia 29 de agosto. É uma segunda-feira à tardezinha e ele se junta a uma multidão de apaixonados por literatura, ávidos por ouvir as palestras e participar dos debates em torno do escritor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) cujo bicentenário passou um tanto apagado em 2021, por conta da pandemia da covid-19.

Aquele jovem se juntou a muitas outras pessoas que se deleitaram com duas noites de intenso aprendizado para os goianienses que encheram o teatro, ouviu música russa, conviveu com outros fãs do escritor russo. Naquele momento, ao cair da tarde de 29 de agosto (e no dia seguinte), ele foi parte integrante de um projeto inusitado para os padrões de sua cidade – o simpósio dos 200 Anos de Dostoiévski, realizado no Teatro do SESC/Centro.


Na abertura oficial do Simpósio, o poeta Aidenor Aires, presidente da Academia Goianiense de Letras, em curto discurso (clique aqui), acentuou a importância dos dois dias de debates, ressaltando: “O território de Dostoievski é o ser humano, não apenas colado à paisagem de seu tempo, mas em mergulho destemido às geografias sombrias e nebulosas e luminosas do ser. Dostoievski é o dedicado cirurgião da existência humana, abraçando sua face fenomenológica e transcendente.”


Aquele momento único que tipifica, segundo pessoas importantes da área cultural, um evento inédito em Goiânia, computou a significativa presença de aproximadamente 300 pessoas nos dois dias do Simpósio, mesmo sendo esses dias uma segunda e uma terça-feira ao cair da tarde. Segundo Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores (UBE)/Seção Goiás, “o Simpósio foi um marco para o cenário cultural goiano, provando que existe interesse do público goiano em prestigiar bons eventos literários”.
O simpósio que fez parte das comemorações de 85 anos do jornal O Popular, foi patrocinado pelo Sesc/Goiás, com a chancela do diretor Leopoldo Veiga Jardim e do Presidente da Fecomércio, Marcelo Baiocchi Carneiro.

Quando apresentei esse projeto à Diretoria do Sesc, eu próprio temia pelo fiasco da iniciativa, mas fui incentivado por outro poeta e sonhador, meu amigo e confrade Aidenor Aires, presidente da Academia Goianiense de Letras (AGnL) e, em seguida, tive como fiel escudeiro da empreitada o sempre ativo e generoso escritor Ademir Luiz, presidente da UBE/Seção Goiás.

O Simpósio 200 Anos de Dostoiévski foi uma ideia que alimentei após a imersão feita  na obra do autor russo, durante a pandemia do, quando isolados numa praia na Bahia, minha mulher e eu passamos horas lendo e discutindo a obra dele, Dostoiévski, juntamente com o livro "Sou o primeiro e o último", de Maurício G Righi.

No caso de Righi, o estudioso se vale dos estudos do teórico francês René Girard para analisar a obra do escritor russo - "ambos, um na literatura e outro no pensamento teórico, dividem o mesmo pensamento sobre a condição humano" - diz Maurício, que assinala: “eles são idênticos, porque indicam a perene insustentabilidade social e histórica, nossa necessidade de Deus. Essa é uma questão-chave em ambos os autores, que são, em essência, autores apocalípticos”, como Maurício pôde bem explanar em sua palestra durante o Simpósio.

No primeiro dia do conclave, a professora e pesquisadora russa Elena Vássina, que leciona na Universidade de São Paulo (USP), mostrou parte do universo e filosófico de Dostoiévski com foco nos seus mais importantes romances: “Crime e castigo”, “O idiota”, “Os demônios” e “Os irmãos Karamazov”.



Elena Vássina (Foto: divulgação)
 
Elena situou o autor em seu mundo, desde a infância de filho de médico – falou da casa (hoje museu em São Petersburgo) de onde o menino Fiódor via a fila de pacientes humildes de seu pai, se emocionava vendo os mais necessitados em busca de atendimento médico (é de onde extrai material narrativo para o romance Humilhados e Ofendidos).

Elena falou dos terrores sofridos na prisão-fortaleza Pedro e Paulo, da condenação à morte, com pena comutada no derradeiro minuto, dos trabalhos forçados na Sibéria, da escola de engenharia militar, da importância da matemática e do desenho, que o autor tanto usou para esboçar seus personagens – Dostoiévski primeiro desenhava o personagem para depois descrevê-los e inclui-los na narrativa. A professora russa debateu com os escritores Solemar Oliveira e Carlos William Leite e respondeu questionamentos da plateia.

No segundo dia do Simpósio, José Donizete Fraga e Maurício G. Righi dividiram a cena do teatro do Sesc, onde Dostoiévski continuou sendo o centro dos debates. Donizete trouxe aos ouvintes traços de sua tese de mestrado na PUC/GO, ressaltando que “ler Dostoiévski é mergulhar no caos da vida real”, justificando que a poética do escritor russo se assenta em três trilhos, a saber: a liberdade, a polifonia e a dissonância.

Para argumentar sobre as profundas questões que levam Dostoiévski ao que o palestrante intitula de “o homem fraturado”, Donizete abriu com uma frase de um crítico russo que sempre afirmava “lá vem Dostoiévski trazendo Jesus a golpes de pecado”, pois é a partir mesmo da falha, do pecado que ocorrem as fraturas recorrentes na obra do autor, como nas mais evidentes de Sônia Marmieládova e Rodion Raskólnikov ou do Stárietz Zóssima e Ivan Karamazov – em todos esses, o fraturamento pode levar à queda, ao suicídio ou à violência, mas pode também conduzir à conversão (como em Zóssima).

Fraga argumentou que talvez para muitos leitores por essa técnica da fratura e queda Dostoiévski torne-se tão árido para alguns, mas é isso que o fez romper com o romance do século XIX e influenciar tantos nesses duzentos anos desde seu nascimento em Moscou em 1821.

Em sua intervenção no Simpósio, Maurício G. Righi justificou que não sendo um literato, propriamente, mas sim alguém do campo da Antropologia Religiosa e da História da Cultura, faria sua abordagem com enfoque histórico, antropológico. E o fez.

Maurício mostrou como Dostoiévski foi um homem do seu tempo, mas que se reporta a muito aquém e se projeta para muito além, como um profeta da modernidade. Aqui, Righi acentua que profeta deve ser tomado no sentido do entendimento hebraico do termo, daquele ser que não apenas faz previsões, mas que compreende os pecados da comunidade, os malfeitos dos governantes e, assim procedendo, Dostoiévski antecipou os temas que dominam a modernidade.

Depois de fazer uma ampla revisão da vida de Dostoiévski (nascido em 1821), passando pelas guerras napoleônicas, o surgimento de Karl Marx, a Queda de Napoleão, o Congresso de Viena, os tratados entre as grandes potências europeias e os 80 anos seguintes de paz ininterrupta, Righi ressaltou o papel do czar Nicolau I e a queda do Império Otomano.

Righi lembrou que os russos chegaram até Istambul e só não a tomaram por conta da intervenção inglesa. A Europa era a oficina e a senhora do mundo. Tudo isso Dostoiévski viveu e refletiu profundamente em seus romances: o surgimento da indústria, a evasão do campo, o surgimento das megalópoles, o crescimento da população urbana, o crescimento da Ciência no séc. XIX, em forma de Saber por excelência – a Antropologia, ela mesma, a Teologia etc.

Por tudo isso, Dostoiévski é um escritor antropocêntrico e faz isso no diapasão do seu mundo – ressaltou Righi. Sua obra enxerga o mundo atrás de si e esclarece um tempo que está por vir. A face de Dostoiévski pode ser vista no narrador do subsolo (personagem de Memórias do Subsolo), o da agressão gratuita, que vê o inimigo na esquina; o do universo das multidões anônimas, em meio às inúmeras frustrações.

Para Righi, Dostoiévski é um cientista das Letras, que experimenta com seus personagens e assim “não há tepidez na obra dele”. Dostoiévski não é um esteta, mas um investigador que cria personagens nas situações-limite e, talvez por isso mesmo, tenha se tornado um clássico universal.

Maurício Righi completou sua apresentação fazendo um paralelo entre a obra do teórico francês René Girard, sobretudo no livro Mentira romântica e verdade romanesca, para confirmar a intuição que provém dos escritores romanescos (como Dostoiévski).

O escritor russo é visto assim como um senhor dos ambientes criados pelo orgulho e a vergonha, em cuja oscilação reside o paroxismo, como se o leitor fosse jogado numa montanha-russa, num clima de esquizofrenia, em que impera a destruição pessoal (morte, suicídio, loucura), pelo fascínio que se tem pelo ódio, pela relação sadomasoquista, o desejo desmedido, a negação deste e a queda. Enfim, no homem de Memórias do subsolo, Dostoiévski compreendeu isso na totalidade.

Seguiram-se amplos debates com Tobias Goulão e Ademir Luiz, com três perguntas provenientes da plateia. Tudo valeu a pena ao celebrarmos o Bicentenário deste escritor de quem o crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux disse ser o maior do séc. XIX e o que mais influenciou o século XX, porque “o que ele fixa – e com que segurança! – são as paisagens da alma”.
 
O que dizem os palestrantes sobre o Simpósio.
Donizete: “O Simpósio Dostoiévski 200 anos insere-se como um marco no cenário cultural goiano. Joga literatura de alta octanagem na capital do sertanejo. Paradoxal, como a obra dostoievskiana.”

Elena Vássina: Primeiro, fiquei impressionada com o público. E não apenas com o fato que o teatro ficou lotado, mas também com aquele engajamento bacana da plateia: anotações, dúvidas, perguntas provocantes e provocadoras durante e logo depois do seminário, tudo que me fez pensar mais em Dostoiévski. Segundo: o brilho intelectual e poético do discurso da abertura de Aidenor Aires e dos debatedores e dos palestrantes do 2o dia, este brilho que estava à altura de melhores eventos literários internacionais e que foi um forte estímulo para pensar nas novas e inesperadas facetas deste clássico que sempre se atualiza em novos contextos e diálogos literários. Lembrei-me de Mikhail Bakhtin, grande estudioso de Dostoiévski: “Ser significa comunicar-se dialogicamente. Quando o diálogo acaba, tudo acaba. Por isso, em princípio, o diálogo não pode e não deve acabar.” Vamos continuar dialogando? Ah, mais uma coisinha: no seminário sentimos que Dostoievski, depois de 200 anos, está mais vivo de que nunca!

Maurício G Righi: "Amei cada momento de nosso encontro, principalmente as pessoas que conheci como a professora Elena e o Ademir. Os pontos altos foram bem levantados pela professora e penso que tivemos um encontro em alto nível, quando pudemos revisitar esse gigante russo, um imortal, tomando de empréstimo um pouco de sua sabedoria, um pouco de seu mundo imaginário genial, que nos revela enquanto pessoas, enquanto seres modernos. Parabéns a todos.”

O que dizem os debatedores:
Solemar Oliveira (físico, professor e escritor): “O Simpósio: 200 anos de Dostoiévski, realizado pelo SESC em parceria com a UBE-GO, foi um marco acadêmico em Goiânia. Contando com nomes de respeito e conhecedores da obra do escritor russo, o seminário foi um momento único para o debate amplo à respeito da obra de Dostoiévski e de suas múltiplas implicações em diversas áreas do conhecimento humano, a saber: a filosofia, a psicologia, a história, a literatura, dentre outras. O debate atualizou o leitor goiano e mostrou que a leitura atenta de clássicos como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e O Idiota são intelectualmente enriquecedores e formadores de uma opinião crítica, social e política.”
 
Carlos Willian Leite (editor e poeta, presidente do Conselho Estadual de Cultura):
“A questão não foi apenas discutir Dostoiévski; o importante foi fazê-lo em Goiânia, cidade onde os acordes do sertanejo ecoam pelas planícies e os ritmos de bota e chapéu dominam o cenário cultural. E com um detalhe: o teatro estava lotado em plena segunda e terça-feira.”
 
Ademir Luiz Silva (escritor e presidente da UBE/GO): "O Simpósio Dostoiévski 200 anos foi um marco para o cenário cultural goiano. Tanto pela produção profissional promovida pelo Sesc quanto pelo alto nível dos debates, mas o mais importante foi provar que existe interesse do público goiano em prestigiar eventos literários. Dostoiévski aprovaria, com certeza".
 
Tobias Goulão (professor da Universidade Católica de Anápolis): “Imaginar um simpósio sobre o bicentenário do grande Mestre de São Petersburgo, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, em Goiânia (Goiás), e com a presença de ilustres estudiosos de sua obra conhecidos em todo o país foi o sonho de um homem que nunca pensou que isso seria ridículo. Adalberto de Queiroz descobriu ser o dever de nossa terra poder prestar essa homenagem a Dostoiévski e oferecer aos goianos um momento junto à professora russa Elena Vássina e ao grande estudioso girardiano Maurício G. Righi. Podermos, por dois dias, ouvi-los e receber um pouco do resultado de seus estudos foi uma experiência única. Tal como mencionado durante o evento, ele já nasceu como um marco histórico. Um marco indiscutível. Daquelas iniciativas de homens fortes que têm no sonho a matéria-prima para o real, para o que será feito, não ligando para os revezes das circunstâncias.”
 
 *Adalberto de Queiroz é jornalista e poeta, membro da AGL e da AGnL em Goiânia.


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