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Adalberto de Queiroz

Considerações sobre Fogo de Junho, romance de Ademir Luiz

| 29.09.23 - 18:18

Capa do livro Fogo de Junho (Foto: Divulgação)

Retomo minhas considerações sobre a prosa feita em Goiás, analisando a narrativa “Fogo de junho[1]”, romance que faz parte da caixa de livros que contém parte considerável da produção literária de Ademir Luiz, misturando prosa, ensaios e crítica.

Abrindo a caixa o leitor encontrará quatro livros: “Hirudo Medicinallis: Ou Carta Aberta de um Vampiro de Brinquedo ao Espectro de Orson Welles” venceu o prêmio literário Cora Coralina de 2002; os contos do livro intitulado “O Beatle Palestino e Outras Pequenas Histórias da Grande História”; a coleção de ensaios que compõe “Brasil 17.1”; além deste “Fogo de Junho: ou 20 Centavos, Romance de Geração para Geração sem Romance” — vencedor da edição de 2014 da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos.
 

Neste artigo, ocupo-me hoje de lançar um olhar crítico sobre este romance dito geracional, evitando taxionomias e avaliações críticas acadêmicas para dissecar no limite de minhas possibilidades esta obra de ficção, complementando a avaliação com respostas que o autor generosamente deu a questionamentos deste cronista.

No próprio material de divulgação do livro, à época do lançamento da citada caixa (2021), tomamos conhecimento que

 “Fogo de Junho” é uma obra sobre o Brasil, país que possui “brasas” na origem filológica de seu nome. É o primeiro volume de uma trilogia comporta de narrativas independentes e alegóricas que pretendem discutir o que o Brasil foi, é ou poderá ser. Não por acaso seu pano de fundo histórico são as chamadas Jornadas de Junho de 2013, gigantescas manifestações de rua que, reunindo (sem necessariamente unir) diferentes vertentes políticas, classes sociais e gerações, marcou o início do processo que trouxe o país para onde se encontra atualmente.”

No entanto, quando expandimos o olhar para os detalhes da obra, notamos que o jovem autor desta narrativa leve e irônica, um romance urbano contemporâneo, tem potencial para ir bem mais longe, tem apetrechos para avançar num projeto ficcional capaz de transpor o romance leve, composto de personagens planos, para algo mais profundo que mantenha a coerência do autor e seu desempenho como líder de uma geração de escritores que hoje produzem literatura em Goiás.

Recorro a um dos teóricos que muito me ajudaram a entender a narrativa ficcional, Edwin Muir em seu clássico “A estrutura do romance[2]”, quando cita outros autores que o ajudaram a prosseguir no propósito de estudar os princípios da estrutura do romance. Ao citar “Aspectos do romance”, de E. M. Forster, Edwin Muir diz a certa altura: “Forster argumenta que o romance deve transmitir-nos a vida porque a vida assim o faz; John Carruthers [em Sheherazade ou O futuro do romance inglês] sustenta que o romance deve apresentar um padrão porque a vida o apresenta. Ambos, sem dúvida, estão corretos: o que esquecem é o romance.” – para ressaltar logo depois:

“Para ter em mente o romance, a primeira coisa que se deve fazer é aceitar (isto é, esquecer) coisas tais como: o romance é sobre a vida e a vida tem um padrão. Afinal de contas, o fato de que o romancista escreva sobre a vida não é assim tão extraordinário; é a única coisa de que ele tem algum conhecimento. Nem é de causar surpresa que, ao escrever, ele inevitavelmente organize a vida num padrão, não importa o que possa pensar a respeito dela. Age desse modo, porque está declarando algo e a vida não. Nesta declaração pode dizer que a vida é um caos ou que a vida é ordem; mas, a não ser que escreve como Miss Gertrude Stein, de qualquer forma aquilo que diz será claro, e mais claro do que a vida. O ponto é suficientemente óbvio. Nunca pensamos em nos queixar porque Birmingham ou Clapham não têm forma, ou porque a vida de Smith não possui finalidade; mas nos lamentaríamos se mesmo o mais medíocre romance sobre Birmingham ou Smith não apresentasse qualquer tentativa de aproximação à coerência. É axiomático que o padrão de qualquer romance, por mais amorfo que seja, jamais pode ser tão amorfo quanto a vida como nós a vemos; pois mesmo o Ulisses [de James Joyce] é menos estonteante do que Dublin. O que Mr. Carruthers realmente deseja é que o romance ponha em prática uma nova concepção filosófica do universo, não as suas próprias leis. Novas concepções filosóficas podem, sem dúvida, ser úteis ao romancista; podem auxiliá-lo a perceber o mundo mais completamente e (seria ideal) deveriam fazer parte de seu conhecimento. Todavia, por mais que ele lhes dê atenção, tais concepções nunca irão revelar-lhe o que são as leis do romance. Poderá escrever um romance estruturalmente bom, imaginando que a vida é um caos, e um estruturalmente falso, pensando que é ordem.”

O Sr. Ademir Luiz sabe que “a única coisa que pode nos falar sobre o romance é ele próprio” e já provou em livro anterior que está de posse do mapa do percurso através de um gênero que deveria ter dado seus últimos suspiros quando o irlandês James Joyce lançou a aventura “Finnegans Wake”, depois de ter virado o gênero do avesso no seu “Ulisses”. Do meu ponto de vista, o irlandês põe um ponto final à forma e ao sentido de estrutura, tornando obsoletos todos os estudos até mesmo como o do respeitável Sr. Edwin Muir. Porém, justamente pela riqueza de ramificações que o próprio Muir aponta ao comparar Forster, Henry James e o próprio Joyce, a imagem que me vem é poética: é como se o jardineiro (leitor, crítico e acadêmico) houvesse decepado todas as árvores do quintal, sem arrancar-lhes as raízes e, passados algumas décadas, os pequenos brotos começassem a aparecer, vicejar; e o pomar se tornasse novamente cheio de vida, com tons diferenciados de verde.

O próprio Fogo de Junho resgata Joyce em mais de uma citação – a principal é a celebração do Bloomsday de 16 de junho de 2013 como situação romanesca, de forma a deixar o crítico mais mal-humorado de sobreaviso sobre a falácia do fim do romance, a ponto de ousar o bordão: “O romance está morto. Viva o romance!”

[3]Minha geração não se interessa em escrever romances de geração. Somos cínicos ou depressivos demais para irmos à caça de Moby Dick. Somos muito autocentrados para percebermos que existem os outros. Não olhamos para os lados, olhamos para dentro. É menos por ironia do que por autocomplacências que nossos protagonistas costumas ser escritores. Escritores de sucesso, escritores frustrados, escritores em crise criativa, escritores, escritores, escritores que escrevem, ou não escrevem, palavras, palavras, palavras. Alter egos explícitos ou disfarçados, que se pretendem variações sobre os mesmos temas de Sal Paradise e Dean Moriarty” [personagens de “On the Road”, de Jack Kerouac].

Eis que os romances ressurgem menores em extensão (e em expressão), falhos aqui e ali em estrutura, menos comprometidos com conceitos válidos até então como de verossimilhança, profundidade do personagem etc. E pur si muove!

No caso em análise, com o seu personagem (quase um tipo, um humour) José e os anônimos que o circundam, estará o benévolo leitor diante da vida e do que chamam de “realidade” – sim essa mesma com as aspas depreciativas da “chamada realidade”, centrado nas revoltas que ocorreram no Brasil em 2013, inicialmente por conta do aumento das passagens de ônibus:
[4]Minha geração faz literatura sobre a necessidade esmagadora e a dificuldade intransponível de escrever literatura. Talvez isso seja fruto das muitas vezes em que assistimos Billy Crystal martelando “a noite estava...” na máquina de escrever nas incontáveis reprises de Jogue a mamãe do trem que passava na Sessão da Tarde...

“Se minha geração não escreve romances de geração, ela se farta de fazer romances de formação em infinita formação, como lagartas dentro da crisálida, telegrafando à borboleta que imaginam que serão, lamentando que possuam tudo para terem lindas asas, mas “terem” não é ter, ter é ser, ser é estar, e, agora, apenas estão, sem ser.

“Talvez minha geração não escreva romances de geração...nem tivemos fracasso, pois nem tivemos tempo para sermos promessas.


Fogo de junho trata de episódios dessa realidade recente, marcante para um tipo que nasceu em 1976 e que vai se relacionando com o mundo a partir de recursos escassos e jungido pelas circunstâncias – tipifica um dos que quase não vai adiante, mas, isto sim, é levado, no sentido do conceito de Massa e Poder do húngaro-britânico Elias Canetti. Essa dissolução do indivíduo na massa está presente nas aventuras e desventuras de José e de outros personagens que o circundam – amigos, namoradas, ex-alunos, colegas do círculo íntimo – a tríade José, Luiz e Salvador ou os membros do chamado “Comando de putrefatos” (p.56):

[5]A multidão ensandecida ocupava a rua, marchando sem direção, lentamente, com passos trôpegos, mas constantes, sem hesitação. Em seu frenesi, perderam qualquer amarra social, atuando em conjunto, como uma onda, como um muro que caminha, como uma floresta que caminha, esmagando tudo que se colocasse à frente. Instintivamente, sabem que não podem ser detidos, não sem um tiro na testa, mas uma bala não mata uma besta de milhões de cabeças, e por isso a besta segue em sua sanha coletiva. Como um organismo vivo, ainda que morto, cada membro garante a sua própria parte do saque à cidade, atacando quem não faz parte do coletivo, alimentando-se de individualidades. Mordem, mastigam, devoram a carne fresca de quem os nega, de quem se recusa a acreditar que o dia do julgamento final chegou, que a última revolução imaginável está acontecendo, aquela que está além das banais disputas políticas, a revolução que transcende interesses econômicos e pessoais, que não descansará enquanto não varrer o ser humano da face da terra.
(...)
Quem não entrou em pânico e teve tempo de separar um do todo, um qualquer, viu uma face vazia, olhos vazios, boca que grunhe palavras ininteligíveis, que trazem lá do fundo sombras de ideias que poderiam ter sido expressas por um ser racional, mas que não mais o é. Fomo reduzidos a criaturas que vagam sem rumo pelas ruas, vestidos ou despidos, num mundo que se rendeu ao caos e ao horror, o horror, homens ocos.

“Eu estava entre eles, caminhando lado a lado eom amigos e amores que também se renderam à insanidade. De algum modo era um deles, ainda que conseguisse pensar o que descrevi agora, criticar o que estava fazendo, o que talvez me habilitasse a não estar ali, a compor a resistência, com arma na mão; mas não, estava entre eles, devorado pela coletividade que devora.”


Nesse sentido, o fogo do título nos leva de volta às considerações de Canetti sobre os chamados “símbolos de massa”, onde o fogo aparece primeiro: “ele se assemelha em todas as partes: quer seja pequeno ou grande, quer apareça aqui ou lá, quer tenha grande ou pequena duração, para nossa imaginação ele tem algo de igual que independe de suas contingências. A imagem do fogo nos parece uma marca vibrante, inextinguível e determinada.” Há também o símbolo da floresta, considerado por Canetti no tópico, ao lado do mar, do vento, da chuva. Não sem razão o narrador de Fogo de Junho cita a floresta em meio à massa, refletindo sobre sua condição de “dissolução como indivíduo em meio à massa”.

Em outro trecho de Fogo de Junho, o narrador está em um bar, porque não pôde ir ao estádio para um jogo internacional da Copa das Confederações, acompanhado de seus colegas e compondo a velha tríade de amigos da mesma geração quando pensa em retomar um projeto de romance, intitulado “Rei de Copas” – reflete sobre o esporte, a massa e a arquibancada como outro símbolo, talvez o que mais representa o Brasil, assim como o mar está para a Inglaterra, os diques para a Holanda, o exército (ou a floresta em marcha) para a Alemanha, as montanhas para a Suíça – todos esses símbolos de massa das Nações, na expressão de Canetti.


Embora este leitor de outra geração não compreenda nem 4 entre dez das citações de programas de Tv, filmes e romances lidos pelo narrador, há uma centelha que brota deste Fogo de Junho que tornar o leitor uma pessoa próxima do personagem José, quase nos tornamos amigos, não tão intensamente como na hipérbole de Chesterton sobre os personagens de Bernard Shaw, ao declarar que todos os personagens de Shaw eram seus amigos. O fato é que guardadas as diferenças de idade, o autor e este comentador se aproximaram na vida real e como leitor foi sendo conquistado durante a leitura. Torceu pelo melhor encaminhamento do personagem, revoltou-se com o aluno disfuncional que arranhou o fusquinha dele, Zé-professor da periferia; sofreu quando ele, Zé, apanhou seguidamente da malta e da polícia; entristeceu-se quando viu seu casamento ruir, quando foi presa fácil de Anas e Marianas, vendo sua ex-mulher (Maria) se aproximar de outro; quando não conseguiu êxito na carreira, quando é levado em camburão, quando perde a carteira e a identidade. Sim, é possível compadecer-se de José e de toda a sua geração aqui esboçada por Ademir Luiz e ainda se divertir lendo Fogo de Junho. É saudável que tenhamos um romance novo (e inventivo) diante do vácuo no romance de uma geração.

 

Escritor Ademir Luiz com box literária (Foto: Divulgação/Editora Novo Século)
 

5 Perguntas a Ademir Luiz

  1. Qual a contribuição que um romancista (um ficcionista) pode dar à história? Qual a contribuição que um historiador pode dar ao romance (à ficção)?
Ademir: Com o avanço das reflexões sobre Teoria da História, uma das perspectivas que mais ganhou força nas últimas décadas foi a noção de que a História também é narrativa. Obviamente, não estamos ainda no terreno da ficção. Os limites entre um e outro são bastante definidos. Fatos ainda são fatos, informações corroboradas por documentos ainda estão acima da imaginação pura e simples. Mas, como estabeleceu Hayden White, recursos próprios da ficção podem ser incorporados na narrativa histórica como forma de lhe dar sentido e finalidade. O drama, a tragédia, a ironia são capazes de enriquecer o “enredo” da História, tornando-o fechado, crível ou mesmo didático. Neste sentido, quando um historiador como Christian Jacq, especialista em História Egípcia, escreve romances sobre faraós o que se pode esperar é que seu conhecimento acadêmico ajude a fornecer informações para construção do mundo ficcional ao mesmo tempo em que minimiza os riscos de anacronismos. Se esse conhecimento vai ajudar na narrativa em si ou na construção e aprofundamento dos personagens vai depender de talento, que é sempre algo imponderável. Não é fácil fazer o que Umberto Eco realizou em “O Nome da Rosa”. Esse livro em particular é muito mais do que o resultado da escrita de um especialista em História Medieval produzindo um romance histórico. O talento do narrador se sobrepôs ao conhecimento do acadêmico. Acontece, mas é raro.   
    
  1. Você vê alguma correlação entre o fim do romance e o desejo de preservação deste através do romance com ênfase na realidade (no fato histórico)?

Ademir: Não. O tão falado “fim do romance” teria acontecido, se é que aconteceu, pelo limite da linguagem ter sido potencialmente alcançado. O que pode haver em termos de refinamento e complexidade narrativa depois de James Joyce, Proust, David Foster Wallace ou George Perec? O romance histórico, enquanto produto cultural, não dialoga com essa problemática. O romance histórico é um romance de gênero, assim como é romances de espionagem, romances de ficção científica, romances de terror entre outros. Não se pode afirmar, por exemplo, que “Guerra e Paz”, de Tolstói, é um romance histórico. Ele é muito mais um romance que usa um fato histórico, as Guerras Napoleônicas, como pano de fundo para debater questões acerca do espírito humano, essa sim a grande função da literatura.
  1. Depois de James Joyce ainda é possível se escrever e ler romances? E ao que serve isto?
Ademir: Como citei anteriormente, James Joyce avançou imensamente no que se pode imaginar como sendo o limite da linguagem. Qualquer coisa mais complexa do que “Finnegans Wake” será simplesmente ilegível. Mas o romance não é apenas forma, é também conteúdo. O que mais importa é discutir o “humano”, em um sentido amplo. Essa matéria é inesgotável e o romance, ao lado da poesia, segue sendo a maior ferramenta criada para se discutir essas questões. Portanto, enquanto houver “humanidade” na humanidade haverá interesse no romance. Vamos seguir escrevendo e lendo romances, romances mais simples, romances mais complexos, não importa.
 
  1. Onde estaria o José (Carlos, Clemente ou o quê seja...nunca Zezinho) no dia 08/1/2022 e que camiseta ele usaria?
Ademir: José, protagonista de “Fogo de Junho”, é um cínico. Provavelmente, estaria na frente da TV, usando uma camisa de futebol, achando tudo uma grande loucura e querendo ver o circo pegar fogo. Fogo de janeiro.
  1. Autor de romance dito geracional, para onde o pêndulo Ademir Luiz pende: Auster ou M. Rubem Paiva; ou outro(a) autor(a)?
Ademir: Se tiver que escolher entre um ou outro, fico com Paul Auster. Por gostar mais de sua literatura, não necessariamente por me reconhecer em suas narrativas “geracionais”. Ademais, não sou da geração de nenhum dos dois e, o que é mais grave, minha geração não escreve romances de geração. “Fogo de Junho” é sobre isso. Minha geração é fracassada exatamente porque ficamos idolatrando as duas gerações anteriores. Tanto na arte quanto na política.   


[1] LUIZ, Ademir. Fogo de junho: 20 centavos: romance de geração para geração sem romance. Barueri (SP): Novo Século Editora, 2021.
[2] MUIR, Edwin. A estrutura do romance. Porto Alegre : Editora Globo, 1975, 89 pp.
[3] Idem, pág. 41/2.
[4] Idem, p. 45.
[5] Ibidem Pág. 141/2.


Adalberto de Queiroz é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras e autor de Cadernos
de Sizenando (poesia) e Os fios da escrita (ensaios), entre outros.


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