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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

Ora, pois!

Mortes injustificáveis

Nem quem seja, nem quem pareça ser. | 10.07.12 - 10:39
Lembro-me, assim que comecei a trabalhar no telejornal da Agência de Comunicação do Estado, de uma das coisas que mais me impressionou durante uma checagem policial. Dessas coisas que se tornam rotina para jornalistas, mas me assustou. Perguntei se havia alguma ocorrência mais grave. O policial me respondeu. “Um elemento com porte de arma ilegal aqui na rua três”. “Como o identificaram?”, perguntei por curiosidade. “Ele estava em atitude suspeita”, respondeu. “Como em atitude suspeita? O que ele fazia?”, questionei. O policial se embananou todo diante da minha pergunta, não conseguiu responder e, percebendo seu constrangimento, retomei a fala perguntando o endereço para equipe ir apurar.

Por acaso, eu mesma fui acompanhar a repórter. Era um homem negro, com roupa toda estampada e, de fato, esquisita. Ele não tinha nenhuma passagem pela polícia. Não tinha cometido nenhum crime com a tal arma, mas também não soube explicar porque a portava. Foi preso. E, de fato, ele poderia vir a cometer um crime com a pistola. Mas, naturalmente, meu sentimento quando deixei aquela reportagem não foi de satisfação: “Um bandido a menos”. Não, foi de revolta. O bandido tem cor, idade, classe social e está aí para ser exterminado.

Esses bandidos estão aí assombrando nossas vidas. Tirando nossa paz. Fazendo-nos renovar o seguro do carro, colocar cerca nas casas, nos mudar para condomínios, nos impedindo de cruzar a cidade de madrugada. Quem são eles? São os outros. Eles não moram no Setor Oeste, não fizeram faculdade, não trabalham oito horas por dia, não têm filhos, nem pai, nem mãe, usam drogas e, provavelmente, não são cristãos. Eles, com certeza, não são os cidadãos de bem. E eles são os procurados pela polícia. São eles quem sofrem baculejo. São eles os abordados, torturados, humilhados e mortos.

Eles são os números, as estatísticas que passam batidas nas páginas de jornais. Veja que assustador: em Goiás, de 2002 para 2010, o número de negros assassinados subiu de 647 para 1.353. Um crescimento de mais de 100%. E, sabemos bem, os negros aqui são em sua grande maioria, os pobres também. Os assassinatos de índios, de 30 para 191. Um crescimento assustador.       

Pela paz dos “homens de bem”, a massa de bandidos deve ser eliminada, excluída. Na ponta extrema desse ciclo, se encontra o policial. Aquele que tem em mãos o poder da decisão da vida. Como Fabrícia Hamu mesmo discorreu nesse texto: são eles que estupram quem tem jeito (ou são) prostitutas. Quem parece (ou é) traficante, em fim último, são eliminados. A exclusão sempre fez parte da vida dessa massa que está nas estatísticas (até o fim). Nas palavras do professor de filosofia André Duarte (UFPR), a política é concebida, em nossos tempos, como violência. Como conseqüência, há um lixo humano que não pode ser integrado a esse sistema capitalista de produção e consumo que deve ser reprimido para que o sistema continue a fluir.

São esses “vermes”, esse lixo humano que o Estado reprime, a polícia extermina. E não é de hoje que a polícia em Goiás tem fama de exterminadora. De ser a protagonista dessas estatísticas, de eliminar esses sujeitos que apresentam perigo (em potencial ou em ato) à sociedade. Ela extermina quem é e quem parece ser. A missão da polícia, no entanto, não deve ser de separar joio do trigo a olho nu antes de matar. Ela não deve e não pode matar. Nem quem é, nem quem parece ser. A arma deve ser utilizada, se necessário, para confrontos. A justiça não se resolve na pólvora de um revólver.

Enquanto assim for, vamos ser mais um. Enquanto defendermos a existência de estereótipos de sujeito que apresenta risco à “paz social”, permitiremos enganos. Enquanto acharmos que trata-se de um mero problema de segurança, haverá excluídos. Enquanto defendermos que a justiça se faz nas mãos de policiais, inocentes e culpados vão continuar a morrer.

Pais de família e solteiros. Idosos e jovens. Negros e brancos. Prostitutas e casadas. Escolarizados e analfabetos. Desempregados e trabalhadores de carteira assinada. Moradores da Vila Lobó e do Setor Bueno. Todos eles podem ser criminosos. E nenhum deles têm, no entanto, direito ao assassinato. O direito é à vida e ponto. Não é à vida, vírgula, com certas condições.

Não há crime que se resolva nas mãos de um policial. Não há assassinato que seja somente da conta do Estado. Porque, ao fim, esse problema não diz respeito a um membro desse Estado, mas ao corpo todo. E isso é problema da Educação, da Cultura, Habitação, Assistência Social, Saúde e Segurança Pública também. Porque a formação desse sujeito, desse lixo humano, marginalizado, passa por tudo isso, chegando enfim à segurança. Matando ou morrendo.

Para pontuar uma última preocupação, recorro a uma breve história que vocês devem conhecer. Em 1961, a filósofa judia Hannah Arendt foi cobrir, para a revista The New Yorker, o julgamento de Adolf Eichmann, um “monstro” da logística nazista, responsável por milhares de mortes. Ele estava escondido na Argentina desde o fim da segunda guerra, mas foi descoberto. Arendt ocupou boa parte de sua vida tentando entender o que aconteceu durante o Terceiro Reich. Como pôde o mundo ter vivido o que viveu durante a segunda guerra mundial.

Para sua grande surpresa, Arendt não se deparou com um monstro no tribunal, como todos esperavam. Buscaram, em vão, justificativas psicológicas para tal monstruosidade. Mas, não, Eichmann não era louco. E nenhum médico provou que fosse. Para Arendt, ele simplesmente não pensava por si, incapaz de refletir. Repetindo clichês, frases feitas, Eichmann foi alguém que simplesmente obedeceu. Foi a primeira vez que Arendt utilizou o termo banalidade do mal. O mal banal, aquele cometido por qualquer um. Por qualquer pessoa incapaz de refletir, de pensar, de ser coerente consigo mesma (afinal, ninguém quer dormir com um assassino).

Portanto, muito me preocupa tentar encontrar insanidade nesses policiais, tal como consta nessa matéria. Tentar buscar justificativas e acreditar que foi um caso isolado. Acreditar que esse ou aquele policial tenha um problema mental é dar continuidade a essa lógica pouco bem sucedida de eliminação. Essa prática acontece há muito tempo, toda semana, por muitos policiais. O Alienista de Machado de Assis, de 1882, embora aos seus 130 anos, é completamente contemporâneo quando pensamos nesse caso. De repente, está todo mundo dentro dos hospícios e ninguém de fora. De repente, todos os policiais são loucos. E o problema não foi resolvido.

A verdade é que é assustador pensar assim, que não vamos conseguir resolver o problema tirando um e colocando outro. Dá medo pensar que esses caras que matam não sejam loucos, não dá? Não é aterrorizante pensar que são pessoas comuns e não grandes vilões como vemos nos filmes? Não é mais fácil achar que são loucos do que refletirmos como o Estado trata o “inimigo”?

As reflexões de Arendt são importantes, ainda, para pensar que para cada comportamento do sujeito de bem que fuja do esperado, para cada atitude indisciplinada; há uma tentativa de entender qual o problema mental, emocional ou social. Qual deficiência que houve em sua educação, por exemplo. A mãe ausente, o pai alcoólatra, o padrasto que estupra. Tudo se torna razão para justificar uma monstruosidade. E quando não se acha razão, tudo parece perder chão.

A tamanha decepção que Goiás sofreu com Demóstenes (senador mais bem eleito do país), por acaso, tem tudo a ver com o que escrevo. Quem diria que alguém trabalhador, defensor da moral, da segurança, cristão, pai de família, poderia oferecer qualquer risco à sociedade? O provável futuro ex-senador passava longe de todos os estereótipos. A sociedade, tranqüila e segura de que os perigosos têm cara, jeito e tipo, confiava que a polícia facilmente os identificaria. E torce para que esses homens não se enganem. Mas, no fundo, todos acabam apresentando perigo em potencial. Bastando apresentar apenas um dos elementos “suspeitos” à polícia.

O assassinato (sim, o que a polícia militar em Goiás faz tem esse nome) não deve servir aos que parecem ser, nem aos que são. Aos enganados, nem aos identificados. A justiça deve ser feita com a lei. E até chegar a ela, o processo deve ser longo, custoso e árduo. Para além da minha reflexão, minha solidariedade à família de Davi Sebba, advogado goiano, assassinado pela PM na última quinta-feira. Diante dessa tragédia (um assassinato 40 minutos antes do nascimento do primeiro filho) deixo, impotente, meus sentimentos por essa perda irreversível. E meus pensamentos de que temos que repensar o papel do Estado diante da vida e do poder da polícia diante de Davi, José, João e Manoel. Os que parecem ser e os que são. Todo mundo tem o direito à vida, e todo mundo tem o direito igual, já cantavam por aí.  

Leia mais:
Não quero ser mais um, Fabrícia Hamu
Quando você para e pensa na vida, Pablo Kossa 

Comentários

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  • 11.07.2012 01:59 jordana frauzino lima

    Parabéns, texto corajoso, muito coerente com o momento que estamos vivendo! .

  • 11.07.2012 01:38 Thais Fleury

    Brilhante! parabens!.

  • 10.07.2012 10:39 Nádia Junqueira

    Lis, repito, acho que você tem que descer a mão no teclado e escrever sobre esse lado midiático disso tudo. Vale essa visão! e muito! fabrícia, concordo contigo. Que tanta dor sirva repensar os rumos da nossa sociedade. Eichmann e banalidade do mal, de fato, dão pano pra manga! cejana, de fato, que bom saber que existem pessoas como luciano leones. Para ser sincera, fiquei emocionada e muito, muito feliz em ler seu comentário. Saber que existem policiais com tamanha lucidez e capacidade de reflexão e crítica é, no mínimo, motivante! parabéns, luciano! fiquei feliz com cada palavra. Siga em frente!.

  • 10.07.2012 08:32 Cejana

    Excelente análise. Profunda e inteligente. Bom saber que existem profissionais como luciano leones que diz -"acreditamos sim que política de direitos humanos e combate ao crime são assuntos que se complementam. " esses sim, devem ser valorizados e os outros julgados. Parabéns, nádia! obrigada pelo texto e pela reflexão.

  • 10.07.2012 02:31 75%Jesus

    Uma pergunta: como evitar a falta de reflexão e a reprodução de clichês e comportamento, quando não há cultura, quando não se tem acesso a outros pensamentos?.

  • 10.07.2012 02:23 75%Jesus

    Obrigado pela ótima reflexão.

  • 10.07.2012 12:21 Luciano Leones

    Excelente texto, que vai direto ao ponto, quando trata da "filtragem racial nas abordagens policiais". Sou policial militar em brasília e dentre outras matérias leciono "abordagem" em nossa escola de formação de praças e no batalhão de polícia de choque, onde sirvo e no contato com os alunos vejo como estes clichês de que trata no texto já estão arraigados em suas mentes mesmo antes de ingressarem na carreira policial. Há muito que observo o alto índice de mortes em autos de resistência, em especial nos estados de goiás e são paulo e muito me preocupam estes números, pois se por um lado sou policial por outro também sou cidadão e em algum momento posso estar do outro lado da abordagem. Nossas polícias têm evoluído muito desde 1988, porém ainda há um longo caminho a ser percorrido e somente o conseguiremos com a participação de todos, judiciário, imprensa, sociedade civil, governo e polícia, com o apoio essencial de policiais que como eu e alguns colegas não compactuamos com excessos e acreditamos sim que política de direitos humanos e combate ao crime são assuntos que se complementam.

  • 10.07.2012 11:33 Fabrícia Hamu

    Excelente análise, nádia. Como você bem disse, nada melhor que um mesmo assunto enfocado por vários pontos de vista. Me fez lembrar da época em que eu fazia mestrado na bélgica e o coordenador de curso sugeriu que lêssemos "eichmann em jerusalém". A obra causou polêmica entre a turma e travamos uma bela discussão justamente sobre essa questão: a falta de reflexão que nos leva a reproduzir clichês e comportamentos, e, sobretudo, à "banalização do mal", ameaçando o sistema democrático. Tomara que tanta dor sirva para se começar a repensar os rumos da nossa sociedade, em várias esferas. Beijos.

  • 10.07.2012 11:32 Lis Lemos

    Nádia, nem preciso dizer o quanto gostei desse texto. Precisamos como jornalistas, lutar contra as versões oficiais da polícia do "elemento em atitude suspeita, que foi morto pq tinha uma arma e um papelote de drogas nas mãos". Precisamos defender que toda vida deve ser preservada, que a polícia não tem o direito de matar, que essa história de "bandido bom é bandido morto" só serve para mascarar uma realidade bem brasileira: quem morre nesse país são pobres e negros, em sua maioria jovens. Devemos nos indignar com todas as mortes por parte do estado e não achar que algumas mortes são mais importantes que outras.

  • 10.07.2012 11:25 Caius Brandão

    Nádia, parabéns pela lucidez e coragem!.

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Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

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