Promovido pelo Governo de Goiás, através da Secretaria da Cultura, e correalizado pela UFG, a Universidade Federal de Goiás, o festival segue se mostrando um evento à altura dos debates e questões do seu tempo e se tornando, durante seis dias, um centro nevrálgico de encontros e debates muito relevantes para o Brasil, em termos de produção audiovisual e de meio ambiente.
Mais do que isso, em sua diversidade, seu ambiente democrático de debates e nos encontros que facilita, entre as fachadas centenárias dos casarões de Goiás e sob a luz única da Serra Dourada, o festival possibilita vislumbrar um pouco do Brasil que queremos e merecemos: mais igualitário, carinhoso e cuidadoso com os seus e com sua riqueza natural.
O tema deste ano - "Cerrado e Amazônia: Dois Territórios, Um só Futuro" - lançou luz sobre a relação indissolúvel entre nossos dois maiores biomas e permitiu olharmos para a Amazônia - foco das atenções internacionais - de uma perspectiva diferente.
Foi um FICA de grande protagonismo indígena, como não poderia deixar de ser, diante dos quatro anos de ataques, violência e desrespeito a direitos que foram o governo Bolsonaro, e em um ano que começou com o país testemunhando estarrecido a extensão da tragédia humanitária Yanomami.
Por isso, o festival foi aberto por um premiado filme indígena:
Mari Hi, Árvore do Sonho, de Morzaniel ?ramari Yanomami. Ele é, ao mesmo tempo, uma incursão pela iniciação xamânica entre os yanomami e um apelo da inteligência ecológica indígena à renovação da nossa relação com a natureza. Por isso também, o FICA começou homenageando o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, brutalmente assassinados há um ano justamente por sua defesa intransigente dos povos indígenas e da Amazônia.
Tivemos ainda a sessão de estreia no Brasil de
A Flor do Buriti, dirigido por Renée Nader Messora e João Salaviza, um filme realizado junto com a comunidade Krahô e recentemente premiado na Mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes. Foi uma sessão com larga presença indígena, e onde a língua Krahô predominou sobre nosso português.
Os júris e comissões de seleção do FICA carregaram também essa fundamental marca da diversidade, reforçando a necessária desnaturalização das desigualdades que felizmente é, em alguma medida, marca do tempo em que vivemos. O júri oficial da Mostra Internacional Washington Novaes teve maioria indígena e feminina e, nos outros júris e comissões de seleção, o festival contou com significativa presença de pessoas negras e LGBTQIA+.
As mostras de cinema do FICA também expressaram de forma natural essa diversidade, em seus olhares e narrativas. Penso que a explicação para isso, mais que no esforço das comissões de seleção e curadorias, reside no fato de que as questões ambientais são indissociáveis do problema da vulnerabilidade. Afinal, do ponto de vista humano, quem mais sofre com os impactos das mudanças ambientais são exatamente os grupos sociais mais vulneráveis: pobres, pretos, indígenas e comunidades marginalizadas de modo geral.
Outro ponto alto foi a Tenda Multiétnica, realizada pela UEG, a Universidade Estadual de Goiás, uma das instituições parceiras do FICA. A esta altura, um componente já inseparável e essencial do festival, a Tenda contribuiu para dar uma cara ainda mais diversa ao evento, com a presença de inúmeras etnias indígenas, populações tradicionais e movimentos sociais de todo tipo.
Fundamental foi também o elemento de formação e produção de conhecimento robustecido, no Fica deste ano, em especial, por meio do Encontro de Escolas de Cinema do Brasil Central, igualmente promovido pela UEG.
São essas escolas que têm transformado nossa produção audiovisual e que contribuíram para o salto quantitativo e qualitativo nos filmes feitos em Goiás nesta última década. Goiás tem hoje longas e séries, documentários e ficções, que percorrem festivais de primeira grandeza no mundo e são mostrados nos principais canais de TV e plataformas de streaming. Isso se deve, em larga medida, justamente ao esforço de formação, pesquisa e extensão levado a cabo - a despeito dos ataques dos últimos anos - por instituições como a UEG, a UFG e o Instituto Federal de Goiás.
Merece ainda destaque a criação da plataforma
FICA TV, agora um elemento permanente da política de cinema e audiovisual do estado, pensado não apenas como canal da produção trazida pelo festival, mas também como ponto de divulgação da produção audiovisual e da cultura de Goiás como um todo.
Por fim, os prêmios do festival este ano refletiram igualmente essa diversidade e a sintonia do festival com o espírito do tempo.
Aya, de Simon Coulibaly Gillard, vencedor do grande prêmio Cora Coralina, fala da relação com o lugar diante da ameaça de elevação do nível do mar.
A Invenção do Outro, de Bruno Jorge, é um impressionante relato da última expedição do indigenista Bruno Pereira e um testemunho do emocionante reencontro de uma família separada durante anos.
Rejeito, de Pedro de Filippis, aborda, de maneira sensível, as tragédias que não podemos esquecer de Mariana e Brumadinho;
Febre da Mata, de Takumã Kuikuro, traz um necessário olhar indígena sobre as ameaças ao Cerrado brasileiro e aos modos de vida das populações originárias que o habitam.
O vencedor dos prêmios Luiz Gonzaga Soares, do júri popular, e João Bennio, de melhor filme goiano, merece um destaque especial.
Adrian Cowell - 50 anos no Brasil sintetiza, em suas quase duas horas, a vida, a personalidade e a obra desse documentarista britânico. Cowell adotou o Brasil como sua casa e é um dos nomes mais importantes quando se fala em documentação da ocupação da Amazônia e de suas populações.
O filme é dirigido por Vicente Rios que, por mais de 30 anos, esteve ao lado de Adrian, como cinegrafista, e é outro nome fundamental do documentário etnográfico e ambiental mundiais. Vicente faleceu em 2022, depois de longa luta contra o câncer, e deixou o filme praticamente concluído.
Adrian Cowell - 50 anos de Brasil é, ao mesmo tempo, um relato avassalador do processo de ocupação da Amazônia, um retrato à altura da grandeza de Adrian Cowell e um testemunho da gigantesca importância de seu acervo, guardado pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, o IGPA. Seu valor para nossa memória e para a história do Brasil e da Amazônia é inestimável. Nada mais justo que o júri do FICA e seu público tenham reconhecido isso e homenageado a memória de Vicente Rios com esse prêmio.
Não podemos esquecer, finalmente, o papel da Cidade de Goiás para a realização do festival e a necessidade de que o FICA consolide, cada vez mais, seu legado de transformação positiva da antiga capital do estado. Nesse sentido, o festival contou com ampla participação da cidade em sua organização, fomentou a cultura local, sobretudo por meio dos shows e apresentações culturais, e apoiou, através de seus parceiros, várias ações de recuperação e melhoria da qualidade ambiental na cidade.
É animador, portanto, e deve ser motivo de orgulho a goianos e vilaboenses, que o FICA tenha sido, em tempos em que a incivilidade circula nas ruas de cara limpa, mais uma vez, palco da civilidade, da igualdade, da diversidade e, por essa via, do país e do mundo que merecemos.