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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Os aeroportos e o sentido da vida

| 25.07.23 - 11:17 Os aeroportos e o sentido da vida Amor sem Escalas, filme com George Clooney (foto: divulgação)
 
O pensador inglês G. K. Chesterton define a felicidade, em seu Ortodoxia, por meio da parábola de um navegador solitário que parte da Grã-Bretanha, perde o rumo no mar e retorna à própria terra natal acreditando todavia encontrar-se em uma ilha selvagem. Desse desnorteamento, resulta para esse marujo uma condição única e paradoxal: ele está, ao mesmo tempo, em casa e num lugar estrangeiro.
 
Esse inusitado aventureiro da própria terra ilustra o estranho equilíbrio que, para Chesterton, devemos buscar na vida - entre o conforto e o pertencimento a um lar e a aspereza e a liberdade oferecidas por aquilo que nos é estranho.
 
É óbvio que Chesterton fala da busca de um lugar interior, de um estado de alma e postura no mundo que nos façam sentir simultaneamente em casa e vivendo uma grande aventura, como verdadeiros Indiana Jones de nossos cotidianos.
 
Não obstante, existe também um lugar físico abominado pela maioria das pessoas, mas que eu adoro justamente por me permitir viver essa condição quântica de ser duas coisas opostas simultaneamente: o aeroporto.
 
É quase um clichê do ser humano moderno certo desprezo enfadado pelos aeroportos. Enfrentamos as viagens aéreas, e sobretudo esses lugares que nos permitem embarcar e desembarcar dos aviões, com tédio e resignação. Reviramos os olhos, queixando-nos das intermináveis esperas, das filas de embarque, da comida insípida, dos abusos das companhias aéreas, do valor extorsivo para despachar bagagens e da lentidão dos procedimentos de segurança - sem contar a falta de modos das massas ignaras que invadiram os saguões anódinos com a popularização dos preços.
 
Os aeroportos parecem ser, portanto, um alto preço a pagar para que possamos viajar, um pedágio oneroso para o exercício dessa alteridade essencial ao homem moderno e bem pensante que só o estrangeiro propicia, um purgatório incontornável para desfrutar das delícias do ócio ofertado pelas paisagens exóticas.
 
Não para mim, entretanto. Amo, desde pequeno, os aeroportos, pequenos ou grandes, e não me importo com as horas de espera, a comida ruim e os bárbaros que ouvem suas mensagens de zap no alto-falante do celular e desvirtuaram o conceito da sala VIP.
 
Há o fascínio infantil que o frenesi e a complexidade das operações me provocam, com a sabedoria e responsabilidade necessárias para que milhares de malas cheguem a seus destinos, para que os aviões recebam combustível e comida, saiam na hora e não colidam uns com os outros.
 
Adulto, entretanto, demorei a entender e superar a vergonha desse amor que, durante muito tempo, pareceu-me um gosto perverso e masoquista. Por que eu me divertia tanto com uma experiência que, para todo o mundo, de forma tão clara, se igualava ao inferno?
 
Pois descobri que os aeroportos me traziam precisamente essa sensação, tão bem iluminada pelo pensador inglês, de estar ao mesmo tempo em casa e em terra desconhecida. Eles são, na verdade, esse terceiro lugar, onde já não estou em casa, mas tampouco cheguei à selva, ou onde já sou estrangeiro, mas ainda sem deixar o lar.
 
Estrangeiro em casa, posso já experimentar o gosto da aventura sem ainda me expor a seus riscos. Como o Gato de Schrodinger, vivo e morto ao mesmo tempo, sinto-me seguro e exposto, e vivo a iminência de grandes perigos como se estivesse no sofá de minha casa. No aeroporto, já estou na estrada sem me sujeitar às intempéries.
 
Pode-se argumentar, talvez com razão, que isso é uma grande ilusão, pois ninguém mora em aeroportos - apenas passamos por eles; apontar também que não se fazem omeletes sem quebrar os ovos e que verdadeiras experiências de alteridade e amadurecimento só acontecem quando realmente nos expomos aos riscos do real.
 
É verdade. Nada substitui o embate com o mundo. Por outro lado, entretanto, a liberdade da estrada só resulta em sentido, como diz Chesterton, se contrabalançada pelas raízes sólidas de algum tipo de pertencimento. O mundo, por si só, é basicamente caos.
 
Enfrentar terras estranhas e se expor a riscos é, em realidade, mais fácil do que manter a sensação de estranheza e aventura naquilo que constitui nossa vida real: o cotidiano.
 
Para isso, é preciso encontrar a chave para atender ao convite de Júlio Cortázar: “quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.”
 
Enquanto não descubro esse segredo, sigo vivendo minhas pequenas aventuras em aeroportos, um pouco como Ryan Bingham, o personagem de George Clooney no genial Amor sem Escalas. No filme, de forma irônica, o mundo convida o herói a se apaixonar, deixar sua vida desenraizada de viagens constantes e encarar os riscos da realidade, apenas para decepcioná-lo e fazê-lo voltar ao cotidiano de saguões de aeroportos, hotéis sem personalidade e voos sem fim.

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