Já revisitei a cena dezenas de vezes em sessões de psicanálise.
Era meu aniversário, provavelmente de 11 anos - talvez 12. Morávamos na Nova Suíça, um bairro à época ainda pouco ocupado em Goiânia e onde havia dezenas de obras. Não por acaso, meu amigos e eu tínhamos por esporte brincar nessas construções, nos finais de semana, quando o movimento de trabalhadores cessava. As lajes incompletas se tornavam nossas montanhas, e os cômodos vazios, profundas cavernas em terras distantes.
Naquele aniversário, eu decidira convidar apenas meus amigos mais próximos para um almoço. Logo depois de comer, saímos em busca de uma obra não vigiada nas redondezas onde pudéssemos nos divertir. Não tardou a encontrarmos um belo sobrado com o reboco mal iniciado - as casas de dois pisos ofereciam muito mais possibilidades de aventuras. Havia inclusive um guarda na obra, mas ele não viu problema em deixar alguns moleques entrarem e brincarem - recomendou apenas cuidado com os pregos.
Alegria maior, na parede alta da escada que dava acesso ao piso superior, havia conduítes expostos que nós começamos a usar como cipós, em lances dignos de Indiana Jones.
Coincidência funesta, não demorou para que o dono da obra chegasse com sua família para uma visita. Não gostou da nossa bagunça, e sobretudo de nos ver pendurados às mangueiras de eletricidade, que ameaçavam se partir sob nossos pesos.
Confesso que eu não era um anjo. Mais que isso, entretanto, em muitos anos de análise, entendi que tenho um fraco para situações de injustiça, quando o outro me acusa de ter infringido uma regra e eu considero que não o fiz. Isso, ainda hoje, me tira do sério por bobagens.
Indignado, pois o guarda nos franqueara a entrada - e aqui a memória fica borrada -, devo ter proferido palavras pouco amigáveis, certamente xingado - a ponto de que um senhor, que suponho fosse o pai do proprietário da obra, armou o braço para me acertar, tendo sido contido pelas sábias mulheres do grupo.
É quando surge meu pai na cena. Saíra a nos procurar provavelmente preocupado com nosso longo sumiço e dera de cara com o entrevero.
Como era de sua personalidade e, reconheço, como de fato pedia a situação, botou panos quentes, exerceu sua diplomacia, acalmou os ânimos - mesmo diante da minha continuada indignação - e nos levou embora.
Se, quase 40 anos depois, por um lado, a razão se tornou adulta e o perdoou, por outro, a emoção segue a mesma da criança e cobra do pai - já no túmulo, coitado - que tivesse tomado minhas dores.
Estamos agora em agosto de 2023, pouco mais de um mês atrás. Felipe, meu filho mais velho, completa 11 anos. Em vez de uma festa grande, ele decidira convidar apenas alguns amigos mais próximos para passarem o dia e acamparem em nosso sítio.
É de tarde ainda, e eles saíram para um passeio a pé pelo condomínio. De repente, Felipe entra correndo pela casa, aos prantos. Conhecendo seu temperamento dramático, não costumo me assustar com os rompantes, mas eram tão angustiados, seu choro e a dificuldade de falar, que, por um instante, me preocupei que algo mais grave tivesse acontecido.
"Uns meninos quiseram brigar com a gente, chamaram um garoto mais velho e eu acho que ele vai bater no Pedro e no Alexandre!"
No trajeto de carro até o lugar onde ele havia deixado os amigos, Felipe estava ainda mais transtornado, remoendo a dúvida de ter abandonado os amigos e corrido para casa: "Se tiver acontecido alguma coisa com eles, vai ser culpa minha", dizia.
Meu coração ficou apertado. Não queria que ele se colocasse um dilema nesses termos, nem desejava que a situação ganhasse um peso maior do que merecia.
Quando chegamos, os quatro meninos conversavam normalmente. O garoto mais velho, um primo, com a nossa chegada, transfigurou-se em um anjo de maturidade e conciliação e me explicou que estava justamente dizendo aos mais novos que não havia motivo para se desentenderem e que todos deveriam ficar amigos.
Não me restou nada, a não ser vestir a capa da conciliação - a diplomacia é também meu forte, dizem meus amigos - e convidar os meninos para voltarmos para casa.
Obtuso, juro que só juntei a primeira cena à segunda em uma sessão de análise poucos dias depois. Perguntei-me então se não havia assumido a mesma posição do meu pai comigo 40 anos antes - e se havia outra posição a assumir, se fizera o certo, e que inferno de ironia é essa vida que nos condena a essas repetições sem fim?
Deixei a coisa esfriar um pouco e procurei Felipe para conversar - menos sobre a situação da briga e mais especificamente sobre o que o angustiava: o fato de ter fugido dela. Procurei desinflar a história, sem deixar de ponderar com ele se fora a melhor escolha.
Fiquei eu, no final, achando duríssima a tarefa de ser pai nos dias de hoje - sem padrões claros de conduta para nos guiar e com esse medo psicanalítico dos traumas que podemos infligir e que supostamente podem moldar um indivíduo pelo resto de sua vida.
Queria que meu pai estivesse vivo para dividir com ele essa segunda cena, lembrá-lo da primeira, e rirmos, enquanto ele me serve mais uma dose de uísque.