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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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E agora, Marechal?

| 26.09.23 - 11:29 E agora, Marechal? Rondon distribuindo presentes para os índios Paresi. (Foto: Luiz Thomaz Reis/Acervo Museu do Índio)O Brasil e suas condições sociais e históricas singulares produziu alguns personagens improváveis, só possíveis por aqui e que ajudaram a nos definir como povo e país: Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Machado de Assis, Lampião, Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Tancredo Neves, Pelé, Aílton Krenak, Raoni Metuktire e Lula, entre outros.
 
Neste momento, em que a urgência das mudanças climáticas nos coloca diante de uma encruzilhada definidora como país, vale olhar para trás e, quem sabe, aprender com outro desses personagens únicos, talvez um dos maiores brasileiros que já existiu: o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.
 
A Amazônia e as populações indígenas e ribeirinhas que são suas principais guardiãs são peças-chave no tabuleiro das mudanças climáticas. A ciência atesta o papel fundamental do bioma no clima global: ou mudaremos de direção e preservaremos a Amazônia ou não haverá futuro para ninguém. E os estudiosos alertam, além disso, que com cerca de 20% do bioma já destruídos é muito provável que estejamos perto de um ponto de não-retorno, em que a estabilidade ecológica de toda a região ficará prejudicada e a floresta poderá entrar em rápido processo de colapso.
 
De origem humilde, órfão ainda menino e de ascendência indígena Bororo e Terena, contra todas as probabilidades, Cândido Rondon chegou à Escola Militar da Praia Vermelha e se formou engenheiro. Abolicionista, ainda jovem envolveu-se também diretamente na derrubada da monarquia e proclamação da República. E dedicou sua vida justamente à Amazônia e a seus povos indígenas.
 
Há quem questione hoje o legado de Rondon por sua contribuição para a ocupação da Amazônia e por sua visão paternalista dos indígenas. Não há dúvida, entretanto, de que seu caráter improvável e único foi fundamental para ajudar a desviar nossos povos indígenas de um caminho certo de desaparecimento.
 
Fundador do SPI, o Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai, Rondon condensou no lema dessa instituição sua filosofia a respeito dos indígenas: "Morrer se preciso for, matar nunca" - e, de fato, em suas dezenas de expedições, sofreu inúmeras ameaças e ataques dos povos com que fez contato, e jamais retaliou.
 
Como homem de seu tempo, Rondon desejava integrar a Amazônia para levar maior qualidade de vida a seus habitantes, com quem se identificava profundamente. Sua visão em relação aos povos indígenas nunca foi a de assimilá-los à nossa sociedade, e sim a de promover uma coexistência pacífica. Não por acaso foi indicado por Albert Einstein para o Prêmio Nobel da Paz.
 
Nas palavras do jornalista Larry Rohter, um de seus biógrafos, não há paralelo para Rondon na história de países com grande população indígena, como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália. O marechal, sugere ele, deve ser visto como "uma espécie de General Custer ao avesso", referindo-se ao oficial do exército americano que liderou alguns dos grandes massacres contra tribos indígenas no oeste.
 
Além de tudo, a Comissão Rondon, que o marechal chefiou durante quase três décadas, fez imensas contribuições para o conhecimento científico da Amazônia, tanto do ponto de vista biológico, quanto antropológico, com centenas de artigos publicados e aquela que permanece até hoje como maior contribuição individual ao acervo do Museu Nacional.
 
Pioneiro foi também seu trabalho de documentação audiovisual. Como a história, em todas as arenas, é amplamente contada de um ponto de vista americano e europeu, costuma-se tomar como marco inaugural do cinema documentário o filme Nanook do Norte, de Robert Flaherty, lançado em 1922, que documenta a vida de uma família de esquimós no Ártico. Todavia, pelo menos dez anos antes, na Comissão Rondon, o major Luiz Thomaz Reis já realizava documentários etnográficos que permanecem ainda hoje como alguns dos mais importantes documentos antropológicos brasileiros.
 
Em 1914, ao lado do ex-presidente americano Theodore Roosevelt, Rondon liderou uma aventura que ombreia com os feitos de Ernest Shackleton nos mares da Antártica e de Richard Burton, na África. Durante dois meses, percorreram o até então não mapeado "Rio da Dúvida", posteriormente rebatizado pelo marechal como Rio Roosevelt em homenagem ao amigo. Nesse afluente do Rio Madeira, em plena estação chuvosa, a expedição enfrentou cataratas e corredeiras, malária e fome, além da ameaça constante dos então ainda desconhecidos Cinta-Larga. Roosevelt por pouco não morreu com uma infecção na perna e passou o resto da vida louvando o caráter e a intrepidez de Rondon. Para o americano, Rondon foi um dos maiores exploradores da história da humanidade - lugar que, uma vez mais, a história eurocêntrica nunca reconheceu.
 
O Brasil deve muito a Rondon. Os irmãos Villas Boas, seus herdeiros, outro conjunto de figuras ímpares que só o Brasil poderia produzir, deram sequência a seu legado, ajudaram a evitar o desaparecimento de nossos povos indígenas e a preservação de parte da Amazônia. O Parque Indígena do Xingu, criado de forma improvável em uma época em que a visão predominante era, como segue sendo, a da ocupação a qualquer preço, é um dos exemplos concretos da articulação única de forças lograda por Rondon e seus aliados.
 
Neste momento em que o mundo olha para o Brasil à espera de um gesto de liderança, cabe lembrarmos de Rondon e nos perguntarmos o que ele sugeriria. Eu não tenho dúvida de qual seria sua resposta.

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