Não há como de fato saber quem somos sem conhecermos nossa história. Conhecer a história, entretanto, implica estarmos sempre abertos a reaprendê-la, pois ela sempre se refaz na medida em que novas evidências e interpretações surgem e reposicionam o tempo passado.
Nos últimos tempos, reaprendi bastante com três narrativas diferentes sobre o Brasil. A primeira delas nem é recente, mas foi uma dessas descobertas que nos deixam humildes pela constatação do pouco que sabemos e por evidenciar o quanto a construção do conhecimento envolve também uma disputa que é política.
Um Defeito de Cor é o premiado romance histórico de Ana Maria Gonçalves, lançado em 2006. A escritora parte do pouco que se sabe sobre a vida de Luísa Mahin, escravizada liberta e uma das supostas líderes da
Revolta dos Malês, ocorrida em 1835, em Salvador. De nome africano Kehinde, ela é sequestrada aos sete anos no antigo Reino do Daomé, atual Benin, e trazida para a Bahia. Luísa seria possivelmente a mãe do poeta e líder abolicionista
Luís Gama (1830-1882), filho dela e de um comerciante português que vende o menino como escravo, enquanto Luísa se esconde das autoridades após o malogro da rebelião. A protagonista passará então a maior parte da sua vida em busca do filho, passando pelo Maranhão, pelo Rio de Janeiro e depois regressando ao Benin e mudando-se para a atual Nigéria.
Nesse percurso, somos convocados a olhar para o quanto a violência contra os africanos é a própria fundação da história e da cultura do Brasil. Afinal, fomos não apenas o último país a abolir a escravidão, mas também aquele que, a partir de um grande acordo nacional, continuou ilegalmente traficando escravos por mais de meio século, mesmo após a aprovação da Lei Feijó, em 1831, que proibiu esse comércio. A coincidência aqui com a célebre frase do ex-senador Romero Jucá sobre a necessidade de "um grande acordo nacional" para por fim à Lavajato não parece mera coincidência.
Quem nos fala sobre esse grande acordo fundador do Brasil no século 19 é o
Projeto Querino, podcast dirigido pelo jornalista Tiago Rogero e produzido pela
Rádio Novelo. Assim como Um Defeito de Cor, o podcast olha para a história do Brasil a partir de uma perspectiva negra e evidencia não apenas o papel central da exploração do trabalho dos africanos para que o Brasil pudesse existir, como também mostra que o que o país tem de melhor e mais seu se origina justamente das contribuições negra e indígena.
Na música, o samba e tudo o que dele deriva, como a bossa nova, tem dois pés na África; na comida, as origens estão na África e nas culturas indígenas; na literatura, temos Machado de Assis, um preto, e Guimarães Rosa, que absorveu a alma do sertanejo, esse ser meio negro e meio indígena; no futebol, basta lembrar quem foi o maior de todos.
Para além da cultura, explica-nos o Projeto Querino, grande parte das instituições que temos no Brasil e que apontam para um projeto de fato de país - e não simplesmente de exploração da natureza e dos pobres - concretizou-se, especialmente na Constituição de 1988, pela resistência de negros e indígenas.
Afinal, se o Brasil ainda tem algo a oferecer ao mundo em termos ambientais, isso se deve, em larga medida, à demarcação das terras indígenas, onde vivem os grandes guardiões da Amazônia. Um estudo feito pelo
Mapbiomas, por exemplo, mostra que essas terras são a principal barreira ao desmatamento no bioma. Nos últimos 30 anos, enquanto as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, nas áreas privadas, a perda foi de 20,6%.
Portanto, em um momento em que o mundo olha para o Brasil em busca de liderança para ações que ajudem a combater os efeitos das mudanças climáticas, é para os povos indígenas que temos que olhar em busca de inspiração e orientação.
Em outro campo, se os efeitos da pandemia não foram ainda mais drásticos em nosso país, mesmo com mais de 700 mil mortes, isso se deveu à existência do Sistema Único de Saúde, o SUS, fruto igualmente da Constituição de 1988 e que, com toda a sua precariedade, foi capaz de oferecer alguma assistência e sobretudo realizar a vacinação em massa em tempo recorde.
Antes de 1988, não havia no Brasil um sistema público de saúde acessível a qualquer cidadão. Tínhamos assistência pública somente pontual, essencialmente filantrópica. No geral, era o salve-se quem puder - quem podia pagar, conseguia atendimento.
Como chama atenção Tiago Rogero, no Projeto Querino, a concepção do SUS e sua previsão na Constituição vêm essencialmente da luta dos movimentos negros e populares, que foram quem sempre vislumbrou e defendeu a ideia de um Brasil inclusivo e igualitário. Na contramão, o projeto oriundo de 1500 sempre representou o oposto disso e é aquilo que, em ampla medida, ainda prevalece: um país desigual, injusto e que concentra riquezas à base da violência e da predação do meio ambiente e do estado pelos interesses da mais atrasada das elites.
Recém-publicado,
Admirável Novo Mundo, livro do jornalista Bernardo Esteves, da revista piauí, expõe, por sua vez, toda a controvérsia em torno do mais fascinante dos mistérios da antropologia e da arqueologia: a ocupação humana das Américas. Escavando a fundo esse debate, mostra, por tabela, como, por trás de toda disputa científica, há também conflitos políticos e que, quando narramos a história de nossos antepassados, mesmo os mais distantes, estamos também construindo nossa sociedade de hoje.
Até o final da década de 1990, prevalecia, incontestável, o paradigma de que a ocupação de nosso continente se iniciara por volta de 12 mil anos atrás, logo após o fim da última glaciação do Pleistoceno. Nessa época, com o mar dezenas de metros mais baixo e o início do derretimento das imensas geleiras que cobriam a parte setentrional do continente, grupos humanos vindos da Sibéria teriam adentrado a América do Norte e rapidamente se espalhado, dando origem à chamada "Cultura Clóvis", primeira tradição humana com ampla presença no continente. Dali, nos séculos seguintes, esses ancestrais dos demais povos indígenas americanos teriam migrado para as Américas Central e do Sul,
Ao longo do século 20, entretanto, rapidamente se acumularam evidências arqueológicas que apontavam para uma presença mais antiga na América do Sul e também na própria América do Norte. No Brasil, o foco mais conhecido dessa controvérsia se encontra na Serra da Capivara, sul do Piauí, onde, desde os anos 1970, a arqueóloga
Niéde Guidon escavou ferramentas de pedra e outros indícios de presença humana que remontam a mais de 40 mil anos.
Foram evidências como essa, mas sobretudo as do
sítio Monte Verde, na Patagônia chilena que, depois de décadas de prevalência, derrubaram o "Paradigma de Clóvis", que evidencia o lado ainda colonial e de poder norte-americano dentro da ciência, que resiste em romper com as narrativas que lhes colocam no centro da história. Não que a ciência não deva ter um lado conservador, em que novas hipóteses precisam se robustecer antes de serem aceitas pela comunidade. Como bem mostra Esteves, entretanto, o fato de que muitos dos que questionavam o paradigma vigente fossem sulamericanos e mulheres, também teve seu peso na resistência da "Polícia de Clóvis" em aceitar suas descobertas e consequências.
Hoje, aceita-se que a América do Sul já se encontrava amplamente ocupada por grupos humanos há pelo menos 14,6 mil anos. Bem antes, portanto, do fim da última glaciação - que terminou por volta de 11 mil anos atrás -, grupos humanos haviam adentrado a América do Norte e se espalhado e adaptado a uma grande variedade de ambientes aqui no Hemisfério Sul: dos Pampas à Amazônia, passando pelos Andes e pelo Cerrado.
Como consequência disso, desde a queda do Paradigma de Clóvis, não temos um modelo teórico abrangente que explique esse processo de ocupação. De quase certo mesmo, resta somente o trajeto de entrada, que parece ter de fato se dados através do Estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca. Mas não sabemos com precisão quando vieram nossos ancestrais mais longínquos, quem eram exatamente em termos genéticos e culturais e como se espalharam com tamanha rapidez por todo o continente.
Entre outros elementos a aprofundarem esse mistério está a presença, revelada pela arqueogenética - o ramo da genética que estuda o DNA desses humanos antigos -, de componentes minoritários, nos cromossomos de algumas populações indígenas do continente sulamericano, que remetem a povos da Oceania e do sul da Ásia. É uma parte pequena de seu DNA que aponta para um longínquo parentesco com populações aborígenes atuais da Austrália, de Papua Nova Guiné e da Ilha de Andamão, no Oceano Índico.
A carga preponderante da genética de nossos indígenas tem origem de fato em povos que vieram da Sibéria, mas esse ruído australasiano - detectado entre os Suruí, os Karitiana, os Xavante e os Guarani-Kaiowá, entre outros povos - complica a história e sugere ter havido mais de um onda de imigração a partir da Ásia, incluindo grupos de origens bem diferentes - é o mistério da
População Y, que intriga arqueólogos, antropólogos e geneticistas.
Além disso, cada vez mais, a arqueologia, sobretudo a amazônica, tem revelado não apenas a rica diversidade cultural de seus habitantes pré-históricos, como mostra também o papel fundamental que tiveram e têm na própria construção do bioma. A Amazônia não é um grande cenário natural que simplesmente abrigou esses povos. Ela é resultado da própria interação dessas culturas com seu meio. Nas palavras do arqueólogo
Eduardo Goés Neves, da Universidade de São Paulo, "a floresta é nossas pirâmides", um verdadeiro legado cultural desses povos.
Com contribuições como as de Ana Maria Gonçalves, Tiago Rogero e Bernardo Esteves, quem sabe, aos poucos, possamos nos "renarrar" rumo a uma ideia de país mais inclusivo, menos violento, menos insano na destruição de seu meio ambiente, e que seja um sonho comum de todos nós de todas as cores de pele, origens e culturas.