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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com
É estranho saber que você já viveu aquele que será provavelmente um dos momentos mais intensos de sua vida. Ter consciência de que, talvez, nos anos que lhe restam já não haverá nada que se iguale em termos de felicidade.
Nesta semana, enquanto o Vila Nova, clube mais tradicional de Goiás, se prepara para o que pode ser uma de suas maiores glórias, completam-se quatro anos de um dos grandes jogos de futebol da história, a fantástica vitória do Flamengo sobre o River Plate, no Estádio Monumental de Lima, que deu ao meu time o cobiçado título da Copa Libertadores da América após 38 anos de jejum.
A trama desse título e dessa partida em específico parecem ter sido escritas por um roteirista experiente. Há uma perfeita divisão em atos, os pontos de virada foram plantados com precisão, o clímax é glorioso e o epílogo, emocionante.
Da mesma forma, tudo parece escrito para uma ascensão igualmente épica do Vila Nova, no próximo sábado, à Série A do Campeonato Brasileiro. Vai ser bonito de ver. O time mais popular de Goiás e sua torcida merecem.
É conhecida a estrutura da Jornada do Herói, desenvolvida pelo roteirista Christopher Vogler a partir do trabalho do estudioso de mitos Joseph Campbell. Essa metanarrativa é muito usada para a construção de roteiros no cinema. Nela, o protagonista deixa seu mundo ordinário e é convidado a uma aventura num mundo que desconhece. Para isso, deve cumprir 12 etapas que dão forma à história canônica.
São elas: 1) O Mundo Ordinário, 2) O Chamado à Aventura, 3) A Recusa do Chamado, 4) Encontro com o Mentor, 5) Travessia do Primeiro Limiar, 6) Provas, Aliados e Inimigos, 7) Aproximação da Caverna Secreta, 8) A Provação, 9) A recompensa, 10) O Caminho de Volta, 11) A Ressurreição e 12) O Retorno com o Elixir.
Se analisarmos as trajetórias do Flamengo, em 2019, e do Vila Nova, neste ano, seguramente encontraremos aí todos esses elementos. Para Vogler, mais importante que as etapas se sucederem nessa ordem apresentada, é sua presença, em algum momento, como elemento estruturante da narrativa.
O Flamengo, em 2019, era um time ainda desacreditado. Apesar da recuperação financeira e da gestão séria, os títulos não vinham e a maldição do "cheirinho", sempre invocada pelos adversários, seguia exercendo seu poder. Esse era nosso "Mundo Ordinário": dez anos sem um brasileirão ou qualquer outro título que importasse, 38 anos sonhando com uma Libertadores que nunca vinha.
O caso do Vila é ainda pior: seu último campeonato goiano veio há quase 20 anos, a despeito do passado de maior glória. Como o vilanovense de hoje, o Flamenguista de 2019 era cético, amargurado e desconfiado. Naquele ano, nos classificamos por um triz para as oitavas de final da Libertadores com um empate suado contra o Peñarol, no Maracanã, e começamos o Brasileirão em forte oscilação.
O Encontro com o Mentor e o Chamado à Aventura vieram embolados. Jorge Jesus chega e, após a estreia com um empate contra o Atlético Paranaense, pela Copa do Brasil, vem a goleada de 6 x 1 contra o Goiás.
Decepcionando no Goianão e desclassificado nas copas Verde e do Brasil, o Vila começa 2023 igualmente indicando que este seria mais um ano como tantos anteriores. Quando se inicia a Série B, entretanto, engrena logo uma sequência de três vitórias e só sofre a primeira derrota na oitava rodada. Mantém-se consistentemente no G4 durante a maior parte do 1o turno, chegando a liderar a tabela por quatro rodadas. Chamado à Aventura, sem dúvida nenhuma. Mentores? Hugo Jorge Bravo, seu presidente? Talvez, em alguns momentos. Claudinei Oliveira? De alguma forma, sim, mas ele cai na 21a rodada, quando o Vila começa a enfrentar as provações da Jornada do Herói e desce para a 7a posição na tabela. Na narrativa do Vila, para mim, o verdadeiro Mentor é, na verdade, seu torcedor, cuja imensa sabedoria e couro engrossado pelos anos de provação não fazem arrefecer seu amor pelo clube.
A Recusa ao Chamado, para o Vila, vem quando, na passagem para o 2o Turno, a sina do clube só parece se confirmar. O desempenho até ali fora apenas mais uma ilusão.
No caso do Fla, a Recusa veio na sequência: após a goleada contra o Goiás, caímos na Copa do Brasil contra o Athletico Paranaense e, na semana seguinte, perdemos por 2 x 0 o jogo de ida contra o Emelec pelas oitavas de final da Libertadores, numa atuação pavorosa. De quebra, Diego Ribas ainda sofreu uma grave fratura no tornozelo. Tudo parecia perdido e não valia mesmo a pena seguirmos nos iludindo.
A Travessia do Primeiro Limiar foi a vitória, na 1a rodada do Segundo Turno do Brasileirão, sobre o Santos, comandado por Jorge Sampaoli, que, até ali, liderava o campeonato. Foi um jogo difícil vencido com um golaço de Gabriel Barbosa encobrindo o goleiro Everson.
Sucedem-se provações, e o Flamengo vai construindo uma campanha assombrosa, tanto no Brasileirão, quanto na Libertadores.
Vêm as semifinais contra o Grêmio que, apenas dois anos antes, ganhara a Libertadores em Buenos Aires e ainda tinha um time muito forte. No primeiro jogo, em Porto Alegre, três gols anulados e terminamos com um empate. As provações não têm fim.
O jogo da volta, no Maracanã, é sem dúvida um dos mais importantes da história do Flamengo, como bem apontou Eric Faria. A atuação soberba e a imposição de uma humilhante goleada mostraram de vez o Flamengo em toda a sua superioridade. Naquele ano, não tinha para ninguém - exceto pelo fato de que ainda faltava um jogo, contra o todo poderoso e então campeão das Américas, o River Plate.
Para o Vila, os elementos da jornada não se enfileiram tão ordenados. As provações seguem. Escaldado, o torcedor entra em modo contínuo de "Recusa ao Chamado". A caverna escura não parece oferecer saída. Mas eis que, na última hora, os deuses mudam de humor e uma passagem se abre. A ressurreição parece possível, mas tudo segue por um fio.
No sábado, o Vila enfrentará sua maior batalha, e não se deve deixar enganar pelo fato de que o ABC seja o último colocado no campeonato. A Jornada do Herói é repleta de armadilhas e a vitória nunca está garantida.
Me lembro de cada momento do dia 23 de novembro de 2019. Exatamente 38 anos antes, o Flamengo ganhara sua única Libertadores vencendo o Cobreloa, no Estádio Centenário, em Montevidéu. A ansiedade e a expectativa eram imensas. Encontrei os amigos ainda no final da manhã e fizemos o primeiro brinde. Impossível encarar aquela angústia tão intensa sem a ajuda do álcool.
O jogo começa. É uma partida encarniçada. Os dois times se estudam, mas ninguém se impõe. E então, aos 14 minutos, o impensável. Filipe Luís não consegue desarmar Nacho Fernández, na lateral esquerda, e ele cruza para trás na área. Gérson e Arão falham no corte e Borré abre o placar para o time argentino.
No restante do primeiro tempo, o Flamengo tem poucas chances e o River ameaça mais. Na segunda etapa, não é diferente. É difícil furar a marcação dos adversários, e o Fla parece cada vez mais nervoso.
Aos 20 minutos, com Gérson contundido, Diego Ribas entra em campo. Não há espaço aqui para falarmos especificamente da história desse jogador, mas ela é também, por si só, uma Jornada do Herói específica. Focado e dedicado, Diego lograra uma recuperação que ninguém julgava possível. Entre o jogo contra o Emelec, quando fraturou a perna, e seu retorno no 5 x 0 contra o Grêmio, haviam se passado menos de três meses. E, agora, ele participaria de um dos jogos mais importantes de sua carreira.
Mas o tempo não para, o Flamengo desperdiça chances e tudo parece perdido. Não haverá ressurreição. O título tão cobiçado após 38 anos escorre pelas mãos.
Nas duas vezes, é, entretanto, pelos pés predestinados de Diego que se iniciam as jogadas para o time ressurgir das cinzas. Aos 43 do segundo tempo, ele desarma parcialmente Lucas Pratto na intermediária do Flamengo. Arrascaeta completa a roubada e arranca pela esquerda. Ele enxerga Bruno Henrique - o Rei das Américas - e enfia na ponta. De forma genial, em vez de fazer o que lhe seria mais familiar, isto é, espichar a bola para o fundo e usar sua velocidade para vencer o lateral do River, Bruno corta para dentro e atrai a defesa adversária para fora da área. É a vez de Arrascaeta passar em diagonal para o fundo. O uruguaio recebe a bola e Pinola quase o alcança para o corte, mas ele faz o passe de carrinho e acha Gabriel Barbosa entrando livre. O empate vem na última hora. Do fundo da caverna, agora é possível ver a luz.
Em Lima, ensandecida, a torcida canta aquele que é quase um segundo hino do Flamengo: "Em dezembro de 81, botou os ingleses na roda!"
O goleiro Diego Alves conta que conversava, naquele momento, com Everton Ribeiro, constatando que os argentinos estavam muito cansados e que agora conseguiriam vencer na prorrogação. Já não parecia possível uma vitória no tempo normal. Estamos aos 46 da segunda etapa.
Mas ele, Diego Alves, repõe a bola nos pés de Rodrigo Caio, que abre para Rafinha na lateral-direita. Rafinha acha Diego Ribas no meio, ainda bem antes da linha de meio-campo, mas Gabriel acena da entrada da grande área adversária, e Diego resolve arriscar. A bola voa num balão meio desajeitado e parece destinada a ser recuperada pela defesa do River. Mas Pinola, o zagueiraço platense - de novo ele - , recua de costas e não a alcança. A bola quica na entrada da área, entre ele e Gabigol, que a disputam. Mais corpulento e próximo, o argentino a afasta com uma cabeçada em direção à meia-lua. Só que, inadvertidamente, entrega-a diante de Gabriel Barbosa e na posição perfeita para seu pé esquerdo. Gabi fuzila o canto direito do goleiro Armani, que salta, mas já não a alcança.
A famosa narração de João Guilherme, pela ESPN, eterniza o momento: "Olha a virada! Gabriel, incrível, incrível! Épico, memorável, o maior momento da história do Flamengo! Eu só acredito porque estou narrando! Quem foi que disse, um dia, que o Flamengo não tem tradição na Libertadores da América!?"
A história se faz. Das cinzas, surge o campeão, no maior jogo de nossas vidas, uma Jornada do Herói perfeita.
Me lembro da explosão de alegria. O impossível acontecera. O milagre do futebol se processara. O choro, os abraços dos amigos. Os cumprimentos mesmo dos que não eram flamenguistas. Ninguém ainda acreditava direito no que havia acontecido.
Ao Vila, resta a batalha final e concluir sua ressurreição. Não sou torcedor, mas sei que vai ser mágico e quero compartilhar dessa alegria. Não nos esqueçamos, entretanto, de que, como na vida, a explosão de felicidade só ocorre porque a vitória nunca esteve garantida. Ela não está.
No magistral No Intenso Agora, premiado documentário de 2017, falando sobre as memórias de viagem de sua mãe à China de Mao Tsé-Tung e sobre o maio de 1968 na França, João Moreira Salles reflete sobre o desdobramento de experiências de realização e alegria. À vivência de alteridade e encontro de sua mãe, seguiu-se a depressão, à exultação revolucionária da juventude parisiense, o vazio da constatação de que o mundo continuaria o mesmo a despeito do levante.
De certa forma, algo semelhante se sucedeu após 2019. Vários outros títulos vieram, inclusive o tri da Libertadores no ano passado. É sempre maravilhoso, mas nada nunca vai se comparar ao 23 de novembro de 2019.