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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Uma Tragédia à Brasileira

| 19.12.23 - 14:00
 
 

Goiânia - Estreou nas salas de cinema, na quinta passada, dia 14/12, O Sequestro do Voo 375, filme dirigido por Marcus Baldini baseado no episódio real de sequestro de um voo da VASP, em 1988, que foi desviado para o Aeroporto de Goiânia.
 
Aficionado por aviação e morador da cidade, acompanhei com grande interesse à época, ainda adolescente, o episódio. É uma daquelas histórias brasileiras que desafiam a ficção por sua implausibilidade e lances rocambolescos. Mais que isso, é uma trágica narrativa que revela o Brasil em sua inteireza.
 
Por isso, apesar de algum esforço nesse sentido, o filme acaba ficando aquém de suas possibilidades. O roteiro de Lusa Silvestre e Mikael de Albuquerque tenta costurar os fios entre a triste jornada de Raimundo Nonato Alves da Conceição, o sequestrador, e as mazelas sociais e políticas do país, mas não consegue encontrar uma estrutura adequada e resvala num retrato pobre e melodramático da gestão do sequestro pelas autoridades.
 
Tratorista, natural do Pará, Raimundo foi um brasileiro como tantos tangido pela pobreza entre empregos precários em diferentes lugares do país. Passou pelo Iraque de Saddam Hussein, trabalhando para a construtora Mendes Júnior, e estava desempregado, na esteira das crises econômicas que marcaram a presidência de José Sarney. Desiludido e perturbado, decidiu sequestrar o Boeing 737-200 para jogá-lo sobre o Palácio do Planalto e se vingar do presidente, que quebrara suas promessas de fim da inflação e do desemprego e que Raimundo via como culpado por sua própria desgraça.
 
Depois de embarcar armado com um revólver calibre 32, no Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, numa época em que poucos aeroportos contavam com equipamentos de Raio-X, anunciou o sequestro e ordenou que o voo, com destino ao Rio de Janeiro, fosse desviado para Brasília.
 
Depois de matar o copiloto Salvador Evangelista com um tiro na cabeça, iniciou tensa negociação com a Aeronáutica e a Polícia Federal, mediada pelo comandante Fernando Murilo de Lima e Silva, um verdadeiro herói brasileiro desconhecido.
 
Falecido aos 76 anos, em 2020, foi apenas graças à frieza e preparo de Murilo que se evitou uma enorme tragédia. Primeiro, ele conseguiu estabelecer empatia com o sequestrador e convencê-lo a desviar o voo para Goiânia. Depois, diante das hesitações de Nonato, executou uma manobra nunca antes, nem depois, feita em um Boeing 737, um tonneau barril, em que a aeronave faz um giro de 360 graus em seu eixo longitudinal; em seguida, simulou o desligamento de uma turbina e forçou um estol, perda de sustentação, colocando o avião em queda livre. Sua intenção era retirar o sequestrador da cabine e tentar fazer com que perdesse sua arma. O esforço garantiu que pousassem em Goiânia, no começo da tarde, com o combustível já praticamente no fim.
 
Durante a maior parte do percurso em direção a Brasília, e depois Goiânia, um Mirage da Força Aérea Brasileira, que decolara da Base de Anápolis, acompanhava o avião, com ordens de abatê-lo, caso a intenção de jogá-lo sobre o Planalto se confirmasse.
 
Uma vez em terra, seguiram as negociações, e Raimundo concordou com a ideia de continuar viagem em outra aeronave pilotada por Fernando Murilo. 
 
Aqui, há algo que o filme, por motivos que ignoro, opta por não contar. Segundo o livro Caixa Preta, escrito por Ivan Sant'anna, que relata em detalhes o episódio, quem comandava toda a gestão da crise e negociações pela Polícia Federal era o próprio diretor da instituição à época, o célebre delegado Romeu Tuma, que se tornaria senador, e que fora diretor da unidade paulista do DOPS, o famigerado Departamento de Ordem Política e Social, parte fundamental do aparelho de repressão durante a Ditadura Militar.
 
Feita a negociação, a Polícia Federal decidiu camuflar um atirador na traseira do Bandeirante da FAB mobilizado para a fuga. Intencionalmente, não foi colocada escada para acesso ao avião, de forma a forçar o sequestrador a se apoiar com as mãos para subir a bordo. Nesse momento, quando se separasse da arma, o policial deveria abatê-lo. Todavia, num típico pastelão à brasileira, o oficial errou o tiro. Nesse instante, Fernando Murilo aproveitou para fugir e acabou recebendo um disparo na perna efetuado por Nonato antes de ser imobilizado por outros agentes e soldados do Exército.
 
Todos os passageiros e tripulantes se salvaram. Raimundo Nonato foi levado para o Hospital Santa Genoveva, em Goiânia, onde morreu, de forma muito mal explicada, dois dias depois, vitimado por anemia falciforme, segundo sua certidão de óbito. 
 
Num país recém saído da Ditadura e em profunda crise, sua morte certamente evitou a aparição pública de um personagem polêmico, que verbalizaria toda a sua repulsa por um presidente altamente impopular, e que, em alguma medida, encarnava as frustrações de milhões de brasileiros.
 
Em O Segredos dos Seus Olhos, o famoso filme argentino ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o roteirista e diretor Juan José Campanella consegue construir uma eletrizante trama de ação que, ao mesmo tempo, reverbera toda a violência da política argentina pré-Ditadura Militar. Por trás de um  crime passional, aos poucos, revela-se toda a história de um país e a crescente sombra de um regime que mataria mais de 30 mil cidadãos de seu próprio país.
 
A tragédia do voo 375, ainda que de maneira diferente, oferecia a oportunidade de uma narrativa semelhante, revelando, a partir dos conflitos pessoais de Raimundo, Fernando, Salvador e outros, todo o drama social e político de um país em convulsão. O filme tem o mérito de recontar essa história pouco conhecida, mas fica bem aquém dessa possibilidade.
 
Três detalhes interessantes sobre a história para finalizar: a Boeing nunca reconheceu as manobras únicas feitas por Fernando Murilo, apesar dos testemunhos, pois, em teoria, a estrutura do 737 não as teria suportado; no bunker de Osama Bin Laden, no Paquistão, após sua morte, entre os documentos resgatados, havia supostamente um relato sobre o sequestro do voo 375; Murilo foi condecorado com a Ordem do Mérito Aeronáutico, mas Sarney nunca o recebeu para um agradecimento. Em outro país, certamente seria reconhecido como um herói, da mesma forma que, nos Estados Unidos, o capitão Chesley "Sully" Sullenberg, famoso pelo improvável pouso de um Airbus A-320 no Rio Hudson após a perda das duas turbinas. Fernando Murilo, aqui ao sul do Equador, morreu anônimo.
 

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