A conta da era do petróleo chegou. Os ganhos de qualidade de vida desfrutados pelas gerações anteriores e atuais às custas do lançamento de muito carbono na atmosfera começam a ser pagos agora, e as próximas gerações herdarão essa fatura.
Matéria da jornalista Lúcia Monteiro, em O Popular de 14 de fevereiro, mostrou, por exemplo, que os gastos do Governo Federal com o seguro agrícola explodiram nos últimos três anos em larga medida em função das mudanças climáticas. Apenas as despesas com o Proagro, Programa de Garantia da Atividade Agropecuária, voltado a pequenos e médios produtores, subiram de R$ 2,1 bilhões, em 2021, para R$ 9,4 bilhões, em 2023. Segundo a reportagem, um dos principais motivos foi o aumento das perdas agrícolas causado por estiagens prolongadas.
Ao mesmo tempo,
segundo o Centro de Pesquisas da Epidemiologia dos Desastres dos Estados Unidos, as enchentes foram o desastre natural relacionado ao clima mais comum entre 1995 e 2015, representando 43% do total de desastres naturais e afetando 2,3 bilhões de pessoas no mundo.
Segundo o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, entre 2008 e 2013, 40,9% dos municípios brasileiros sofreram algum tipo de desastre natural.
Dados da Agência Nacional de Águas (ANA), mostram que, em 2017, aproximadamente 3 milhões de pessoas foram atingidas por alagamentos e inundações no Brasil.
Com mais de 80% de nossa população vivendo em cidades, onde as enchentes, alagamentos, enxurradas e deslizamentos de terra se tornaram parte do cotidiano, é inevitável que, em ano de eleições municipais, esse tema ganhe o debate político.
Está clara a insuficiência da lógica que sempre orientou as intervenções de drenagem urbana, baseada em grandes obras de infraestrutura, para dar conta da velocidade das mudanças e da intensidade que ganharam os fenômenos climáticos, sobretudo nas grandes cidades.
Nesse paradigma ultrapassado de relação com a água, responde-se a volumes crescentes e mais concentrados, com obras cada vez maiores. Se a cidade recebe mais água, aumentam-se as estruturas de captação e condução. Para que os rios, durante as cheias, não destruam estruturas adjacentes, eles são canalizados e contidos em seu fluxo. Se as calhas não comportam os volumes, constroem-se piscinões para retenção temporária ou emissários para despejar o excedente a jusante.
Todavia, as mudanças no regime de chuvas têm deixado claros dois problemas subjacentes com os quais os gestores municipais terão que lidar nos próximos anos. Em primeiro lugar, a lógica das grandes obras de drenagem não ataca a raiz do problema, que está na impermeabilização do solo e na ocupação descontrolada de áreas, interferências que interrompem os serviços originalmente prestados pelos ecossistemas - absorção, infiltração, filtragem, retenção e escoamento - e causam desequilíbrios no ciclo da água.
Além disso, os desastres climáticos evidenciam a natureza profundamente desigual de nossas cidades. A vulnerabilidade ambiental é um dos componentes da pobreza e expõe os menos favorecidos, entre os quais pretos e pardos são ampla maioria, de maneira desproporcional, aos efeitos das mudanças do clima. São eles os que sofrem na pele, de forma mais direta, o impacto das enchentes, inundações e alagamentos - por terem sido empurrados para áreas de risco, pelas moradias mais precárias, pela falta de saneamento e por usarem o transporte coletivo nos finais de tarde, quando os temporais acontecem.
A boa notícia é que soluções para adaptarmos nossas cidades às mudanças do clima já existem e são, em geral, mais baratas que as grandes obras de infraestrutura normalmente cogitadas para resolver esses problemas. Elas demandam entretanto uma mudança de paradigma em termos de engenharia e da lógica de planejamento na gestão pública - exigem, sobretudo, que repensemos a maneira como nossas cidades se inserem no ciclo da água.
O processo de urbanização alterou de forma radical as condições de infiltração do solo, o que se associa à remoção da vegetação para alterar, de maneira drástica, o ciclo hidrológico que antes funcionava de forma equilibrada.
Sem nossas interferências, a água se infiltrava no solo e era devolvida, em parte, à atmosfera pela evapotranspiração das plantas, ou se acumulava na terra, incorporando-se ao lençol freático e a aquíferos mais profundos. Apenas uma fração dela escorria superficialmente e era despejada diretamente nos rios e córregos.
Com a impermeabilização e a remoção da vegetação, essa lógica se alterou drasticamente. Um volume muito maior de água passou a escorrer superficialmente, provocando erosão e degradação do solo, ganhando volume, gerando enxurradas, alagamentos e tendo como destino direto as calhas da rede hidrográfica urbana, estranguladas e retificadas, quando não invadidas por ocupações irregulares.
É por isso que, diante das mudanças climáticas, cada vez mais cidades têm adotado as chamadas "soluções baseadas na natureza" para enfrentar os problemas trazidos pelo excesso de água durante a estação chuvosa. São tecnologias simples e de custo em geral muito mais baixo que partem da ideia de "retroajuste ambiental da paisagem urbana".
O termo pomposo nada mais expressa que a ideia de intervir na paisagem das cidades para reabilitar o ciclo da água, permitindo que a natureza desempenhe aquelas funções interrompidas pela impermeabilização excessiva do solo, pela remoção da vegetação e pela ocupação inadequada de áreas. Retroajustar, nesse sentido, significa readequar a ocupação do solo para devolver o ciclo da água a condições mais próximas daquelas em que funcionava originalmente.
Para isso, é preciso planejar pensando em toda a área das bacias ocupadas pela cidade e desenhar conjuntos de intervenções que reequilibrem o fluxo da água, promovendo maior infiltração, retenção em locais onde haja espaço e diminuição do escoamento superficial. São tecnologias já existentes e de fácil implantação, como valas, trincheiras e poços de infiltração, jardins de chuva, alagados construídos, bacias de retenção, calçadas e pisos permeáveis.
Sua grande vantagem, além do custo baixo, é a possibilidade de implementação incremental, adicionando novas estruturas que vão readequando a paisagem aos poucos para diminuir e finalmente solucionar o problema.
As soluções baseadas na natureza não prescindem, entretanto, de um planejamento urbano responsável, de políticas que ajudem a conter a especulação imobiliária e que promovam o acesso, especialmente dos mais pobres, à moradia de qualidade e ao saneamento. Tampouco evitarão a necessidade de encarar decisões difíceis, mas inevitáveis, como a desocupação de áreas de risco e a necessidade de renaturalização das calhas dos rios, transformadas, em muitos casos, em vias expressas nas grandes cidades.
Não adianta mais tapar o sol com a peneira. O calor acabará por incinerá-la.