Na semana passada, falei sobre como certos pressupostos de nossa visão de mundo, em especial a ideia de uma radical separação entre natureza e sociedade, atrapalham nosso entendimento do que é o conhecimento científico, embaralham a compreensão da relação entre ciência e política e encontram-se na base da desconfiança contemporânea em relação à ciência.
Outro caminho para tentarmos desfazer mitos em relação ao conhecimento reside em olharmos para o funcionamento real da ciência. Como, na prática, a ciência é feita e como se consolidam as afirmações que passamos a tomar como verdadeiras ou científicas?
Nesse sentido, há um incontornável livro lançado recentemente que, além de oferecer excelentes exemplos nessa direção, também ajuda a colocar na sala um bode fundamental para o tempo em que vivemos: o dos problemas de saúde causados por conhecimentos tomados como científicos, mas que de científicos não têm nada.
Ciência e Mitos da Nutrição e do Metabolismo
O médico gaúcho
José Carlos Souto ganhou notoriedade nas redes a partir de seu blog
Ciência Low Carb, em que divulga e comenta a melhor ciência disponível sobre a relação nutrição-saúde, e faz uma defesa fundamentada de uma dieta baixa em carboidratos como caminho para uma vida mais saudável e o tratamento de patologias como a síndrome metabólica e o diabetes tipo 2, e também para a redução do risco cardiovascular, de modo geral.
Ao longo desse percurso, desfaz vários mitos tomados como ciência, mesmo na maior parte dos consultórios, e mostra como nossa ignorância - e a de grande parte dos médicos - está por trás da verdadeira epidemia de obesidade, diabetes e problemas cardiovasculares que assola o mundo.
Para pensarmos sobre a produção de conhecimento e nossos equívocos em relação a ela, tomo aqui dois desses mitos desfeitos pelo Dr. Souto: o da relação entre ingestão de gorduras e risco cardiovascular e o da relação entre consumo de carne, ácido úrico e gota.
Não entro aqui na discussão específica sobre a dieta low carb em si, em relação à qual, quem se interessa deve urgentemente ler o livro. Afirmo, entretanto, que sou evidência viva de seus efeitos. Foram 10 quilos perdidos em curto espaço de tempo e sem passar fome, remissão de esteatose hepática - a famosa gordura no fígado -, diminuição da glicemia e grande melhora dos níveis de colesterol e triglicerídeos, com a consequente diminuição do risco cardiovascular.
Bem, gordura faz mal ao coração e aos vasos sanguíneos, certo? Afinal, o consumo de gordura eleva os níveis de colesterol que são a matéria-prima daquilo que entope nossas artérias e leva a infartos e outros acidentes vasculares.
Errado. Não há nada na ciência hoje que comprove essa relação. Em direção contrária, tudo sugere que dietas que podem incluir teores relativamente altos de gorduras, mas sobretudo que sejam baixas em carboidratos, são as mais benéficas do ponto de vista do risco cardiovascular.
Gota é uma patologia causada pelo acúmulo de cristais de ácido úrico nas articulações. Em nosso corpo, o ácido úrico é um subproduto do metabolismo de moléculas orgânicas chamadas purinas. Carne vermelha contém muitas purinas. Logo, o consumo elevado de carne vermelha deve ser evitado por quem desenvolve essa patologia. Correto?
Errado. Não há qualquer evidência científica de que uma dieta pobre em purinas efetivamente reduza ataques de gota. As purinas são na verdade uma classe de moléculas orgânicas altamente presente em todos os organismos vivos. Como explica o Dr. Souto, "das quatro letras do nosso alfabeto genético - A,T,G,C -, duas, adenina e guanina, são purinas". Portanto, cada célula humana possui bilhões de moléculas de purinas em seu DNA. Da mesma forma, no ATP, o conhecido trifosfato de adenosina, principal molécula usada em nossas trocas energéticas, a adenosina é igualmente um tipo de purina.
Na verdade, o que o conhecimento científico mostra é que a maior parte do ácido úrico presente em nosso sangue se origina da degradação de purinas produzidas pelo próprio corpo, e não daquelas moléculas ingeridas na alimentação.
Em seu livro, o Dr. Souto conta, por exemplo, a história de um paciente jovem, magro e praticante de esportes, que foi acometido por crises de gota. Orientado por um médico, ele passou a evitar carnes, peixes e frutos do mar, mas podia comer à vontade arroz, batata, pão, massas, etc. O homem ganhou peso, o ácido úrico não parou de aumentar e ele passou então a tomar medicação para forçar a redução de seus níveis. Acabou desenvolvendo diabetes. Com o abandono das orientações perigosas desse profissional e a adoção de uma dieta baixa em carboidratos, o paciente descontinuou a medicação, conseguiu perder peso e curar o diabetes, sem que voltasse a ter crises de gota.
Mas como essas ideias de mecanismos que conectam diretamente a gordura consumida nos alimentos a infartos e as purinas ingeridas na comida à gota se cristalizaram como verdades ditas e repetidas cotidianamente em consultórios médicos, por vezes com consequências extremamente negativas para pacientes como esse atendido pelo Dr. Souto?
De fato, no primeiro caso, o colesterol é a principal substância que compõe as placas que estreitam artérias e levam a infartos e AVCs. É intuitiva e sedutora, portanto, a hipótese de que o aumento nos níveis de colesterol no sangue esteja associada à formação dessas placas. Mas o que faria aumentar o colesterol no sangue?
A hipótese que associa consumo de gordura, especialmente gordura saturada, e mortalidade cardiovascular remete, explica-nos o Dr. Souto, ao fisiologista americano
Ancel Keys e à problemática inferência de causalidades a partir de correlações estatísticas, um dos calcanhares de Aquiles do conhecimento que frequentemente levam à pseudociência.
Na década de 1950, o Dr. Keys, então na Universidade de Minnesota, iniciou uma projeto de pesquisa, que ficou conhecido como "Estudo dos Sete Países", em que a partir de dados nutricionais e epidemiológicos detectou correlações estatísticas significativas entre consumo de gorduras saturadas, doenças coronarianas e infartos.
É corolário básico da estatística, entretanto, a compreensão de que correlações não implicam em causalidades. Isto é, o fato de que duas variáveis se comportem de forma associada - em nosso exemplo, o consumo de gorduras saturadas e a frequência de infartos em uma população - não significa que necessariamente o comportamento de uma seja determinado pelo da outra.
Por isso, estudos epidemiológicos como o de Ancel Keys não servem para estabelecer relações de causa e efeito. Por definição, são úteis somente para levantar hipóteses a serem testadas.
As pesquisas mais robustas e conclusivas na área médica são os chamados "ensaios clínicos randomizados", em que um conjunto grande de pessoas é dividido de forma aleatória entre dois ou mais grupos, sendo um deles o grupo-controle, que não sofrerá a intervenção experimental destinada a testar a hipótese, enquanto o(s) outro(s) passarão por essa intervenção. A distribuição das pessoas por sorteio entre os grupos assegura que quaisquer outras variáveis que possam introduzir confusão no experimento e na análise fiquem igualmente distribuídas entre os grupos, permitindo que as variáveis de interesse sejam isoladas com rigor metodológico.
Mesmo com base em um estudo apenas epidemiológico, a partir de 1961, a Associação Americana de Cardiologia (AHA), de cujo Comitê de Nutrição, Keys fazia parte, passou a recomendar a redução do consumo de gorduras saturadas como forma de prevenir doenças cardiovasculares. Em 1970, a AHA, sem qualquer nova evidência, começou a recomendar a redução no consumo de todo tipo de gordura e consolidou a ideia, ainda hoje prevalecente, de que dietas baixas em gordura seriam mais saudáveis.
Todavia, desde então, diversos estudos demonstraram não apenas a inexistência de qualquer relação direta entre consumo de gordura e doenças cardiovasculares, como evidenciaram associação, na verdade, entre a ingestão elevada de carboidratos e um maior risco de mortalidade em geral.
Até a ciência é questionável
Mas, voltando ao ponto da conversa, o que tudo isso pode nos ensinar sobre a ciência?
Em primeiro lugar, precisamos entender que a construção do conhecimento científico não é um processo uníssono e tranquilo por meio do qual um método infalível revela os mecanismos por trás dos fenômenos.
Aliás, sugiro consultar os verbetes da Wikipedia sobre
Ancel Keys ou sobre o
Estudo dos Sete Países para ver que por lá segue prevalecendo a validação de suas afirmações e listam-se inclusive contestações em relação aos questionamentos feitos por outros cientistas como o Dr. Souto.
Jano, o deus romano da dualidade e das transições, metade jovem, metade velho,
que Bruno Latour usa como metáfora para falar da ciência (Fonte: Wikimedia)
Nesse sentido, é preciso distinguir, explica-nos o filósofo
Bruno Latour, entre a ciência feita e a ciência em processo. Na primeira, o conhecimento consolidado - ainda que temporariamente - tem a aparência de verdade incontroversa, enquanto a segunda se caracteriza pela própria controvérsia, por discussões acaloradas e mesmo por acusações que denunciam interesses e associações escusas entre ciência e interesses econômicos e políticos, fazendo transbordar o debate para além dos laboratórios e dos muros das universidades.
O sociólogo italiano
Tommaso Venturini usa a imagem do magma para ilustrar a natureza do conhecimento científico. A ciência em construção é como lava, onde muitos elementos se misturam de forma fluida. Aos poucos, entretanto, o magma vai se consolidando e ganhando formas sólidas e mais discerníveis. Todavia, mesmo as rochas solidificadas pelo resfriamento podem novamente ser consumidas e liquefeitas por novas erupções e novos fluxos de lava. Nesse sentido, como aponta Bruno Latour, o conhecimento científico é menos "aquilo que existe e mais aquilo que resiste".
Primeira lição: nem tudo o que um cientista afirma é inquestionável; ao contrário, parte fundamental do método científico reside justamente no princípio de que tudo pode e deve ser questionado.
Nesse sentido, é preciso distinguir, explica-nos o filósofo
Bruno Latour, entre a ciência feita e a ciência em processo. Na primeira, o conhecimento consolidado - ainda que temporariamente - tem a aparência de verdade incontroversa, enquanto a segunda se caracteriza pela própria controvérsia, por discussões acaloradas e mesmo por acusações que denunciam interesses e associações escusas entre ciência e interesses econômicos e políticos, fazendo transbordar o debate para além dos laboratórios e dos muros das universidades.
O sociólogo italiano
Tommaso Venturini usa a imagem do magma para ilustrar a natureza do conhecimento científico. A ciência em construção é como lava, onde muitos elementos se misturam de forma fluida. Aos poucos, entretanto, o magma vai se consolidando e ganhando formas sólidas e mais discerníveis. Todavia, mesmo as rochas solidificadas pelo resfriamento podem novamente ser consumidas e liquefeitas por novas erupções e novos fluxos de lava. Nesse sentido, como aponta Bruno Latour, o conhecimento científico é menos "aquilo que existe e mais aquilo que resiste".
Primeira lição: nem tudo o que um cientista afirma é inquestionável; ao contrário, parte fundamental do método científico reside justamente no princípio de que tudo pode e deve ser questionado.
Recifes na foz do Amazonas, outro tópico de acalorada controvérsia científica (Fonte: Greenpeace)
O que dizer então dos recifes de imensa riqueza ecológica recentemente descobertos na foz do Rio Amazonas por pesquisadores e que se colocam como obstáculo ao projeto de exploração de petróleo naquele leito oceânico? Dizem os defensores do desenvolvimento que esses achados são inconclusivos e exagerados por grandes ONGs internacionais que não têm o interesse dos brasileiros pobres em conta. Alegam, de outro lado, aqueles preocupados com a riqueza ambiental que a exploração do petróleo, além de anacrônica, quando se pensa no aquecimento global, pode também produzir perdas irreparáveis à Amazônia e impactar negativamente seus moradores. Quem está certo? Por que a ciência parece alimentar a controvérsia em vez de resolvê-la?
Terceira e derradeira lição: precisamos abandonar de vez o mito infantil da ciência neutra que revela verdades inquestionáveis sobre a natureza. A ciência, tanto quanto a política, é a própria dinâmica através da qual construímos nosso mundo comum. Verdades, sempre provisórias, vão sendo construídas e ampliadas para dar curso e pavimentar o caminho da vida em sociedade.
A ciência é um método específico e poderoso, mas ela não existe em um mundo separado da sociedade e da política. Depende delas, na verdade. A desconfiança da contemporânea da ciência se origina sobretudo nos supostos laços espúrios que ela mantém com a política. E eles existem de fato. Não precisamos, entretanto, lançar luz sobre esses elos para denunciar e descredibilizar de uma vez a ciência e a política, mas para reforçá-los e podermos separar o joio do trigo. Para que as escolhas que não são feitas à luz do dia a respeito dos conhecimentos que queremos desenvolver passem a ser feitas às claras e sejam encaradas com naturalidade pelos seres humanos. Precisamos de mais democracia e mais ciência, e não menos, como parecem querer os representantes da anticivilização que andam tomando a política.