Sam Gamgee (Sean Astin) segura o frasco com a luz de Eärendil em O Senhor dos Anéis
(Imagem: Warner/Divulgação)
No último dia 30, completou-se um ano desta coluna. Foram 52 artigos, uma centena e meia de páginas, quase uma semana, possivelmente, em horas passadas diante do computador. Os formatos vão de crônicas leves e pessoais a quase-ensaios pesados e talvez incompreensíveis sobre ciência e política; os temas, do meio ambiente ao cinema, passando pela psicanálise e pela literatura, sem esquecer um ou dois contos perdidos - ou achados - no meio do caminho
Em uma de suas crônicas recentes, Antônio Prata refletiu sobre o que chamou de "totalitarismo utilitarista", nossa obrigação contemporânea de encarar tudo o que fazemos como um meio para algo mais importante. Não vamos a uma exposição de arte ou a um show de música simplesmente pela experiência estética, que se esgota em si, mas para absorver algo que será digerido e transformado "em nutrientes pra segunda de manhã", diz ele. Tudo precisa ser útil.
Esta coluna, nesse sentido, começou de fato com uma justificativa utilitarista. Afinal, é importante ter voz e opinião, colocar-se na esfera pública, participar dos debates, a despeito de que haja cada vez menos liberdade de expressão em nosso ambiente polarizado (ou talvez seja importante insistir em falar exatamente por isso).
Escrever também sempre foi, apesar da inevitável angústia diante da página em branco, meu modo de organizar as ideias, conectar fios soltos, buscar algum sentido, ainda que provisório. Como escrever se só tenho dúvidas e quase nenhuma resposta? Mas sempre foi escrevendo que encontrei alguma explicação.
Aos poucos, entendi que escrever por meio de perguntas pode ser um estilo - e um estilo que agrega, que convida as pessoas a pensarem junto com você. A postura afirmativa, em sentido diferente, causa imediata simpatia ou repulsa, adesão ou oposição. Expor a dúvida, conversar por indagações, de outro lado, promove aproximação lenta e a possibilidade de diálogo, mesmo na divergência. Interrogações desinflam egos, exclamações e pontos finais os evidenciam.
Não é fácil, entretanto, como já falei neste mesmo espaço, assumir a dúvida como postura existencial. Obriga-nos à humildade, a aceitar a precariedade das verdades, a encarar cotidianamente o insondável mistério da existência. Todavia, só a dúvida parece fornecer bases sólidas para uma ética da convivência democrática. Afinal, como afirmava o filósofo francês Bruno Latour, diante de críticas às suas posições, a única opção ao relativismo é o absolutismo.
A disciplina da escrita semanal, com compromisso de entrega, reafirmou, para mim, essa convicção na dúvida. Não é preciso saber para escrever. Basta ter dúvidas. Não afirme, pergunte. O que move o conhecimento não é a verdade, é a curiosidade.
Nas palavras do famoso entomólogo americano Edward O. Wilson: "O desconhecido e o prodigioso são drogas para a imaginação científica, despertando uma fome insaciável depois de um único bocado. Esperamos de coração que nunca venhamos a descobrir tudo".
Escrever com frequência tem me deixado mais em paz com a dúvida e a ausência de absolutos, e mais confortável com a escuridão.
Entendi, inclusive, que a angústia, que muitas vezes me bloqueava ou me fazia adiar incessantemente o confronto com a página em branco, se enraizava exatamente na obrigação de olhar de frente para a incerteza, para o vazio. Escrever sobre o quê? Para quem? O que vão pensar?
Uma vez atravessada essa ilusória parede de fogo, emergi ileso e sem queimaduras do outro lado. Agora, o que começou como um meio passou a se bastar, convertendo-se em um fim em si mesmo.
O facho de luz é débil e a treva espessa. Todavia, seguimos.