Invariavelmente, com o mês de julho em Goiás, vem a pergunta: você não vai pro Araguaia?
O goiano tem uma relação de profundo afeto e conexão com esse rio. O Araguaia conversa com nossa alma mais que o Paranaíba ou o Tocantins, outros importantes cursos d'água que também nascem no território do estado. Estudiosos da cultura saberão explicar melhor as causas dessa preferência, que certamente têm a ver com a beleza natural do rio de praias brancas e águas esverdeadas e também com sua piscosidade, mas que, suspeito, enraizam-se, de forma mais profunda, na geografia do território e na forma como ajudou a moldar certa ideia de goianidade.
Julho, além das férias escolares, é ápice da estiagem, mês das águas baixas e mais límpidas e das noites frias, apesar dos dias quentes. O trecho do rio situado logo acima e abaixo da cidade de Aruanã, ponto mais próximo de acesso ao rio, tanto da antiga capital, Goiás, como da atual, é o mais procurado e celebrado.
A experiência de fato do Araguaia, para o goiano, reside em acampar. É uma tradição herdada dos velhos pescadores que, nessa época, mudavam-se, durante um mês ou mais, para o rio, onde erguiam um rancho que passava a servir de base para as saídas de pesca.
Embora o acampamento moderno não seja só pesca e tenha se sofisticado em estrutura, o espírito permanece. Durante o mês de julho, famílias e grupos de amigos fazem esse movimento migratório rumo ao grande rio, que mantém sua majestade apesar dos desmatamentos o entupirem cada vez mais de sedimentos e da pesca predatória ter diminuído em muito seus cardumes.
Desse passado, recordo-me bem das visitas aos meus pais do velho
Carmo Bernardes e da Dona Maria, sua mulher. A cada agosto, regressavam tostados de sol, cheios de histórias e com o caminhão carregado de peixes e outras iguarias, como os ovos de tracajás - o quelônio típico do Araguaia -, numa época em que a lei não proibia essa maldade.
Eu cresci, entretanto, com outra experiência do Araguaia, não menos afetiva e igualmente formadora de minha personalidade. Ela remete, não obstante, a uma porção menos conhecida do rio. Desde nossa mudança para Goiás, em 1982, passamos a frequentar a Fazenda do Encantado, do saudoso jornalista
Batista Custódio que, como Carmo Bernardes, de sua origem rural, trazia um tipo diferente e profundo de relação com a natureza.
Segundo seus relatos, comprara a fazenda aos pedaços, a partir de um primeiro anúncio em jornal, em que dizia buscar uma cachoeira para comprar. Adquiriu-a no município de
Baliza, a 420 quilômetros de Goiânia, onde o Araguaia, ainda em seu alto curso, corre estreito e agitado no interior de um cânion. A tal queda d'água não pertence ao Araguaia, e sim a um pequeno córrego de rara beleza que o jornalista e sua então esposa Consuelo Nasser batizaram com o sugestivo nome de "Encantado".
O Encantado deságua no Araguaia de forma única, entrando embaixo das rochas para atravessar a parede do cânion. Antes de fazê-lo, entretanto, abre-se em uma última cachoeira e num improvável poço cristalino com uma praia da areia mais branca.
Ao longo dos anos, Batista foi comprando outras porções de terra até que o Encantado se tornasse integralmente propriedade sua. Ao lado dessa primeira cachoeira, construiu um imenso rancho de pau a pique e chão de areia, para onde se mudava no mês de julho com a família e onde recebia os amigos.
Como diz Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, referindo-se às belezas do seu mundo: "Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo". As águas do Encantado são verde-esmeralda e correm sobre pedra e areia serpenteando em meio ao cerrado e às veredas numa sucessão inacreditável de poços, corredeiras e quedas d'água.
O Araguaia ali, espremido, ruge incessantemente entre as paredes de pedra. Lembro-me de nos deitarmos sob a imensa Lua cheia para ouvir o barulho dos enormes dourados e cachorras saltando em sua luta contra as corredeiras.
No rancho, quando o sol se punha e a noite caía, vinha a luz amarelada dos lampiões, o som dos grilos e o coaxar dos sapos, o ruído hipnotizante do Araguaia sempre ao fundo, enquanto o rádio tocava "Riacho do Navio", a canção de Luiz Gonzaga que fala do retorno a um pedaço de terra querido.
Havia o medo da noite, dos ruídos dos pássaros, do pio agudo da coruja e da escuridão da mata num lugar então ainda bastante remoto dos sertões brasileiros. Mesmo assim, me sentia aconchegado e logo o cansaço do dia inteiro em brincadeiras no rio e no mato tomava conta do corpo e eu adormecia.
A memória é feita de metamorfoses enganosas, e eu já não sei se o que sinto hoje são as mesmas emoções originais de menino ou sua transmutação em outra lembrança remoldada pelas experiências que se superpuseram. A lembrança não invoca pavor ou angústia, mas sim uma espécie de temor reverente diante da natureza desconhecida e do mistério que foi, de certa forma, a base do que depois me levou a aventuras em montanhas geladas, cavernas escuras e outras paisagens distantes. De algum modo, nos Andes ou nas Rochosas do Canadá, no Vale do Ribeira ou no Pico da Neblina, é como se eu buscasse a mesma sensação daquelas noites distantes dos anos 1980 - uma sensação de estar ao mesmo tempo em casa e num lugar estranho.
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P.S: Em 2011, lancei Cartas do Kuluene, um longa-metragem a meio caminho entre documentário e ficção, em que usei alguns dos cenários da Fazenda do Encantado como locações. O filme está disponível
aqui.