A mostra "Ancestral: Afro-Américas", com direção artística de Marcello Dantas e curadoria de Ana Beatriz Almeida e Lauren Hayres, em itinerância no Centro Cultural Banco do Brasil-BH, desafia nossa resistência estomacal e psicológica num 'passeio' cultural através de uma seleção a dedo, que provoca o resgate histórico de centenas de civilizações migradas a contra gosto.
Há uma certa acidez, amargura, ardência e um gosto salgado de mar quando percorremos o olhar sob o mapa e as trajetórias de tantos navios negreiros nele navegados. Expostos ali, em vitrinas asseguradas pela vigília constante de câmeras e funcionários muito bem apresentados do Museu, artecfatos valiosos, não pela nobreza de sua matéria-prima, mas pela raridade de sua existência.
Um impressionante par de tornozeleiras, em ferro forjado, com oxidação em tom azinhavre, revela uma estrutura robusta e espiralada, cuja extensão entrelaça os tornozelos até chegar na parte superior da panturrilha. Analisando tal indumentária, não me restariam dúvidas de que eram imponentes guerreiros, fortes como deuses, selvagens e corajosos como leões. Usadas como verdadeiras joias e símbolo cerimonial de proteção, status ou riqueza, suas semelhanças às pesadas algemas, estilo grilhão, remete de forma perturbadora aos instrumentos de tortura utilizados por seus colonizadores. Fica evidente então que, para terem se conformado com a submissão da escravidão, foram impostos à extrema violência física, psicológica e sexual.
O psicanalista Contardo Calligaris, escreveu um polêmico artigo para o Jornal Folha de São Paulo, em 2013, "Para que serve a tortura?". Como um estudioso da psicanálise, ele abrangeu o tema com certo ceticismo e indulgência clínica, o que nos permitiria definir a sádica natureza humana como uma 'licença poética' das pulsões pela sobrevivência.
A obra "Fundamento" (2020), do performista cubano, Carlos Martiel ilustra um ambíguo sentimento de dor e prazer. O título da obra abrange o significado da atitude de intransigência ou rigidez na obediência a determinados princípios, ou regras: o fundamentalismo, onde a fotografia do artista desenha perfeitamente a atual conjuntura política dos noticiários, como se o passado tivesse parado no tempo. Até hoje, co-existem com a era da revolução tecnológica, colônias escravizadas, amarradas e torturadas pelas grandes potências mundiais. Mesmo providos de força, beleza e vigor se sucumbem à pressão ideológica, mesquinha e frívola de fundamentalistas, porque, lá no fundo, há um fetiche bem bizarro tanto ao fanatismo religioso quanto ao BDSM. Uma relação um tanto doentia e de co-dependência, pois não há um torturado sem um torturador e vice-versa.
Nos torturamos mutualmente, membros da mesma família, cidadãos da mesma nação. Vivenciamos um jogo vicioso e, 'prazeroso', de bondade e bondage, servidão e liberdade, prende e solta.
É provável que o próprio uso das palavras e seus desdobramentos, induzam um tipo de conduta libertina no senso comum, como: preso, presídio, preside, presidente. Um fundamento linguístico, ou político, um tanto perigoso, talvez até kármico, de um passado carregado de gerações mal resolvidas sexualmente:
"O apetite sexual, como o apetite pela comida, não é senão uma necessidade do corpo. Não deixes que te governe, nem o transformes em algo maior do que é: uma sensação momentânea que a natureza produz para perpetuar a espécie." Marco Aurélio, em Meditações.