Na noite de domingo pra segunda, a primeira chuva longa desta estação caiu — daquelas que começam mais fortes, com trovões e relâmpagos, e depois se apaziguam numa água constante, nem garoa, nem temporal, durante toda a noite. “Invernou”, diriam os mais antigos, fenômeno que antigamente podia se estender durante dias ou até semanas de precipitação ininterrupta, e que hoje é cada vez mais raro.
A ciência mostra que as mudanças climáticas globais estão deixando o Cerrado mais quente e seco — processo agravado regionalmente, num círculo vicioso, pela remoção da cobertura vegetal, que altera o balanço energético do bioma e intensifica a perda de umidade.
Uma das razões por trás disso é o Anticiclone Subtropical do Atlântico Sul (ASAS), uma grande região de alta pressão atmosférica semipermanente sobre o oceano, próxima à costa do Brasil. Ela influencia fortemente o clima do país, especialmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Em sistemas de alta pressão como esse, o ar tem uma tendência descendente, a que os cientistas chamam de “movimento de subsidência”. Ao descer, o ar se aquece e se torna mais seco, o que inibe a formação de nuvens e de chuvas. Com as mudanças globais, o ASAS está ficando mais forte e ocupando uma área maior, inclusive sobre o continente.
Essa expansão aumenta a pressão atmosférica sobre o bioma, intensificando a subsidência e reduzindo a convecção, que é o movimento vertical do ar, pelas diferenças de temperatura, processo essencial para formar nuvens e chuvas. É o que explica o pesquisador Gabriel Hoffmann, da Plataforma Internacional para Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, que publicou, nos últimos anos, os
trabalhos que melhor demonstram o impacto das mudanças do clima no Cerrado. O resultado são estiagens mais longas e a redução da precipitação anual. Além disso, o calor e a maior pressão atmosférica promovem um aumento geral das taxas de evaporação, o que vem levando à diminuição da vazão dos rios e das superfícies cobertas por água no Cerrado, de modo geral.
A má notícia é que as mudanças já estão aqui e afetam sobremaneira a atividade agrícola (como já vêm demonstrando
outras pesquisas) e a vida nas cidades, onde as maiores temperaturas superficiais levam a uma intensificação da convecção localizada e à maior probabilidade de ocorrência de tempestades severas. A boa notícia é a de que uma parte importante dessa equação das mudanças no Cerrado é regional — como explicado, é responsabilidade sobretudo do desmatamento —, o que significa que ainda podemos mudar o quadro e diminuir por aqui os efeitos das transformações globais sobre as quais temos poder de influência limitado.
A chegada da chuva pra valer me lembrou de um conto maravilhoso e pouco conhecido: A Seca, do escritor goiano Gil Perini, cujo
O Pequeno Livro do Cerrado é uma obra-prima feita de histórias situadas em nossa região e em seu universo rural.
Em A Seca, o ritmo das estações determina a vida de um menino e de sua mãe, moradores de um retiro em uma vasta fazenda nas proximidades da Ilha do Bananal. Com as primeiras chuvas, chega sempre o patrão, a quem o menino admira profundamente, para buscar o gado abrigado nas várzeas do Araguaia. À medida que os anos passam e o menino cresce, as chuvas trazem o fazendeiro e grandes mudanças na relação dos dois. É um conto impressionante, curto e trágico, onde a sombra humana e a paisagem do Cerrado se entrelaçam para confrontar os personagens com seus destinos — assim como em Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, e no maior de todos, o Grande Sertão: Veredas.
A primeira chuva, afinal, não é só um evento climático, mas um marco profundo que, na cultura e na vida do Cerrado, como com o menino de A Seca, molda nossas vidas. A paisagem não é mero cenário, mas força ativa na tragédia humana.