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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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À Memória de Michel Callon

| 11.11.25 - 13:49

 


Michel Callon, engenheiro e sociólogo francês (1945-2025) - (Foto: Radio France/Reprodução)


Soube da morte de Michel Callon, ocorrida no último mês de julho, somente há poucos dias. É preciso celebrá-lo pela grandeza de seu pensamento e de sua obra. Callon foi um dos artífices de uma verdadeira revolução na maneira pela qual compreendemos o conhecimento, a ciência em específico, e sua relação com a política.
 
É cada vez menos comum esse tipo de intelectual de conhecimento abrangente e multidisciplinar — caras que se sentem confortáveis em transitar da arte à filosofia e à ciência, de Shakespeare a Hobbes e Niels Bohr. O aprofundamento do conhecimento demanda especialização, mas, no extremo, o mergulho profundo nos cega para o contexto que condiciona nossos próprios objetos.

Felizmente, ainda existem intelectuais que atravessam pontes. Michel Callon se graduou engenheiro nesse lugar inusitado que é a Escola de Minas de Paris, uma faculdade voltada às ciências aplicadas que, ironicamente, produziu uma enorme revolução no campo da sociologia da ciência.

De engenheiro, Callon tornou-se sociólogo da ciência, mas sem nunca perder o olhar e o traquejo de sua formação técnica. Isso aconteceu porque, nos anos 1970, o governo francês demandava da École des Mines diagnósticos sobre inovação e impacto social da ciência. Esse contexto prático, somado à efervescência intelectual de Foucault e Bourdieu, que questionavam as fronteiras entre ciência e política, abriu espaço para algo novo.

Dentro da École des Mines, surgiu o Centro de Sociologia da Inovação (CSI), fundado em 1967 por Lucien Karpik. Callon e, depois, Bruno Latour, integraram esse centro e o transformaram em um polo que virou de cabeça para baixo nossa compreensão da ciência.

Callon promoveu uma virada radical. Em vez de explicar a ciência por um "método" abstrato ou por "princípios universais", ele e seus colegas invadiram o laboratório para olhar as práticas: o que os cientistas fazem.

Foi ali que Callon ajudou a fundar uma das abordagens mais radicais do século XX: a Teoria Ator-Rede (TAR). E a ferramenta que ele desenvolveu para isso foi o que chamou de "Sociologia da Tradução".
 
"Tradução", para Callon, não tem a ver com idiomas. É o processo pelo qual um ator (um cientista, um político, um empreendedor) "traduz" os interesses de outros atores para que se alinhem aos seus, criando uma rede de aliados para que um determinado conhecimento se torne realidade.
 
Naquele que é seu trabalho mais famoso, o estudo sobre as vieiras na Baía de St. Brieuc, Callon mostrou isso em ação. Ele acompanhou biólogos que tentavam salvar a população dos valiosos moluscos, adaptando um método de cultivo japonês.
 
O que ele aponta em seu artigo de 1984 é quase óbvio, mas algo que teimamos em não ver. O trabalho dos cientistas não era "descobrir a verdade" sobre as vieiras, mas sim, ativamente, construir uma rede de aliados onde ciência e política se ajustavam de um modo preciso que gerasse estabilidade — pescadores felizes, vieiras em abundância, consumidores atendidos, ambientalistas satisfeitos.
 
E o ponto genial é esse: para isso, esses aliados eram tanto humanos quanto não-humanos.
 
Os cientistas precisavam "traduzir" os interesses dos pescadores (convencendo-os a não pescar na área de teste em troca de benefícios futuros). Precisavam "alistar" as próprias vieiras (fazendo com que se fixassem nas redes de cultivo, o que elas teimosamente não faziam no início). Precisavam "mobilizar" os colegas malacologistas (para que aceitassem seus artigos e legitimassem o método) e, claro, os financiadores (para que continuassem pagando pelo projeto).
 
O "conhecimento" sobre as vieiras não era um ponto de partida. Foi o resultado frágil e temporário dessa negociação complexa. Se as vieiras não colaborassem ou se os pescadores quebrassem o acordo, o projeto falhava e a "verdade" científica se dissolvia.
 
E é aqui que seu pensamento se revela tão poderoso. Callon nos ajudou a reumanizar a ciência, mostrando-a não como um caminho linear para a verdade, mas como um processo social, político e material, cheio de controvérsias, negociações e "traduções". A "verdade", como explicava Bruno Latour, não é o que existe, mas aquilo que resiste à controvérsia, porque seus aliados (humanos e não-humanos) a sustentam.
 
Graças a Callon, aprendemos a ver o saber não como espelho da natureza, e sim como uma forma de ação coletiva — política, técnica e ética ao mesmo tempo. Recolocar a ética no coração da ciência talvez dependa justamente dessa visão: entender que ela é uma obra comum, sempre provisória, sempre em disputa.
 
Michel Callon foi um dos maiores a honrar a bandeira desse relativismo — não o do ceticismo vazio, mas o da humildade diante da complexidade do mundo. Um relativismo generoso, curioso e profundamente humano.

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