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Economia

Mulheres negras deixam sua marca no empreendedorismo goiano

Necessidade acaba gerando novos negócios | 27.08.21 - 14:56 Mulheres negras deixam sua marca no empreendedorismo goiano As irmãs Carla e Samanta lançaram a doceria Pretas de Barro (Foto: Lethycia Faria)José Abrão

Goiânia - Empreender não é fácil, mas para uma pessoa negra e mulher há uma série de obstáculos adicionais que podem parecer invisíveis aos demais. Talvez, o ponto mais marcante é o motivador por trás do empreendedorismo negro no Brasil: 27,1% deles começam um negócio por falta de emprego ou outra ocupação, como forma de sustentar suas famílias. É o que apontam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
 
“A mulher preta empreende por necessidade. É quem começa a fazer uma laranjinha, a trançar o cabelo da vizinha. Fiz minha roupa, uma amiga gostou, já comecei a vender porque precisava do dinheiro”, relata Naya Violeta, que é estilista por formação e vocação. “Não fui para faculdade de Moda apenas porque achei legal: ia para o Setor Campinas com R$ 20 comprar tecido para transformar aquilo em produto e ralar para multiplicar”, lembra.
 
Naya rompeu barreiras e foi a primeira goiana a representar o Centro-Oeste na São Paulo Fashion Week (SPFW) com uma marca residente em Goiás. “Fui criada em Goianira e aprendi muito com tias costureiras. Sempre estava no quintal dessas senhoras, com um sentimento forte de comunidade”, relata.
 
O caminho foi longo e envolveu mais do que um diploma universitário e talento. Foi preciso aprender a vender seu produto e a impulsionar o próprio negócio. Recorreu ao Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), onde fez algumas capacitações. “Cheguei a participar do primeiro encontro específico para mulheres negras em Goiás. Era um pedido antigo, conseguimos um curso com 20 mulheres. Achei um pontapé importante”, avalia.
 
A balança é desequilibrada. Segundo o Sebrae, há mais microempreendedores entre os pretos e pardos (68%) do que entre brancos (49%). Eles também apresentam negócios mais recentes e menor escolaridade, o que aumenta o desafio e ajuda a entender as próximas estatísticas. A população negra possui empresas menores: no geral, há cerca de três funcionários, enquanto em uma firma de um empresário branco a média é de cinco. Essa mesma pesquisa mostra que 55% dos negros relataram não ter nenhum funcionário, contra 46% dos brancos.
 
Entre as mulheres, 58% buscaram, mas não conseguiram um empréstimo com bancos, embora apenas 25% possuíam nome no Serviços de Assessoria S.A. (Serasa) ou Serviço de Proteção ao Crédito (SPC). Ainda segundo o Sebrae, apenas 21% delas possuem um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Antes da pandemia, estas empresárias já eram as que tinham a menor renda média entre os empreendedores brasileiros: R$ 1.384 mensais. E a pandemia não poupou: dados do Sebrae revelam que 36% dos pequenos negócios liderados por mulheres negras acabaram fechando por não conseguir se adaptar ao ambiente on-line ou delivery.
 
Analista técnica do Sebrae Goiás, Thaís Oliveira afirma que muitos buscam ajuda em órgãos de apoio, como o Sebrae e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). “Em função disso, fazemos ações pontuais e parcerias. No ano passado, fizemos um grupo de capacitação com consultoria em marketing, gestão financeira e design thinking para 30 afroempreendedores, principalmente vendo a necessidade de apoio técnico para passar por esse momento”, conta Thaís.  “O Sebrae vem tentando dialogar, se aproximar, para atender essa demanda acumulada muito real das empresárias negras”, reconhece Naya.
 
Um dos obstáculos é que embora esses empresários sintam falta de capacitação, ainda faltam instrutores e tutores negros e com vivências similares. “Essa é uma sensibilidade que temos não só nos cursos dirigidos a afroempreendedores, mas nos grupos de mulheres empreendedoras. Nossa instituição se adequa ao público e ao tempo, especialmente na forma como se comunica com eles. Estamos atentos a essa questão e estamos pensando em ações específicas para estes grupos”, conta Thaís.
 
Existe esta distinção: o afroempreendedor empreende com a cultura negra. São lenços africanos ou produtos que remetem às religiões africanas ou produtos voltados para negros, como uma escova de cabelo diferente. Também existem empreendedores negros, que podem atuar em qualquer iniciativa. Ou seja, todo afroempreendedor é um empreendedor negro, mas nem todo empreendedor negro é um afroempreendedor.
 
“Quando olhamos a questão de crédito, negros têm mais dificuldade de acesso, especialmente durante a pandemia, por não cumprir os pré-requisitos das instituições financeiras. Estamos atentos a isso e sempre buscando soluções e formas de apoiar estes grupos”, pontua Thaís. O Sebrae foi procurado recentemente pelo superintendente de Igualdade Racial de Goiânia, Domingos Barbosa dos Santos, para formar uma parceria. "Estamos em articulação para elaborar o plano de ação desse projeto", finaliza Thaís.
 
Segundo Naya, o afroempreendedorismo é um grande potencializador. “A gente se multiplica. Eu empreendo e incentivo outras mulheres. Tendo um empreendedorismo voltado para pessoas pretas e feito por pessoas pretas, de forma organizada, isso cura várias feridas do passado”, afirma.


Naya Violeta (Foto: Nathalia Takeuchi e Andreia Takeuchi)
 
Quem concorda é Erika Pereira dos Santos, fundadora da N jinga Moda Afro. A marca surgiu “por consequência de um processo de aprofundamento, de autoconhecimento e também de caminhada. De estar nos movimentos sociais, no movimento de mulheres negras, pelos quais tive a oportunidade de reconhecer minha ancestralidade, minha cultura, a história afro-brasileira. E também reconhecer o legado africano e indígena no cotidiano, nas experiências culturais”, afirma.
 
Como Naya, as roupas da N jinga são inspiradas pela estética africana e buscam ampliar o leque da inclusão, através de vestimentas unissex. “É transformar o vestir a partir da nossa estética e experiência cultural. Abraçamos uma proposta para vestir diversos corpos; produzir moda para valorizar a diversidade a partir da estética brasileira e africana”, explica.
 
Já as irmãs Carla Oliveira e Samanta Oliveira, de Aparecida de Goiânia, enveredaram pelo caminho dos doces, com o chocolate, os bombons e os bolos da Pretas de Barro. Um caminho que também surgiu da necessidade: ambas são professoras de formação e começaram a fazer bombons para vender na escola e na faculdade como uma renda adicional.
 
“Começou tudo muito rudimentar. A gente vendia muito bem, tinha uma clientela muito boa”, conta Carla. Mesmo na sala de aula, o sonho da doceria continuou e a Pretas foi lançada oficialmente em 2016 nas redes sociais. “Começamos a fazer feirinha, tentamos entrar no mercado de casamentos, mas além de ser extremamente competitivo, tomamos um calote imenso que quase acabou com a marca”, conta Carla.
 
“O público que ia, chegava no nosso estande, olhava, e ia pro próximo. Sempre tivemos essa apresentação mais rústica, em madeira, mas as pessoas seguiam adiante para estandes com mulheres brancas”, lembra Carla. A dupla gastou o que tinha e o que não tinha para expor em uma feira de noivas. Além do calote, foi um contato direto com o racismo: elas eram as únicas expositoras negras e acabaram ignoradas pelas clientes.


Erika Pereira, da N Jinga Moda Afro (Foto: Fernando Dias)
 
“É difícil aceitar que em pleno século XXI as pessoas ainda tenham tanto preconceito. Hoje a gente senta e ri daquela feira de noivas, mas no dia foi muito ruim, era opressor ver as pessoas nos ignorando”, relata Samanta. “Essa foi a maior frustração da nossa vida e tivemos que recomeçar do zero para cobrir o rombo”.
 
A dupla deu a volta por cima através das feiras. “Na época a internet nem era tão importante assim: o boca a boca dava mais retorno. Muitas vezes a gente ia pras feiras já com quase tudo vendido, porque as pessoas encomendavam”, conta Samanta.
 
No âmbito da gestão, a mudança de foco e a busca por capacitação são questões recentes na história da Pretas. “Missão, valores, histórias, isso foi trazido pra gente. Nossa conta de Instagram era privada, nem sabíamos como fazer um perfil profissional”, disse Carla. “Começamos a olhar as oportunidades do Sebrae. Queremos fazer doce, mas somos as donas do negócio. Temos acompanhado isso e já fui até o Sebrae e recebi uma consultoria, porém acabei não levando adiante”.
 
“Temos a intenção de ter um lugar, um espaço para a Pretas, porque dependendo das demandas, a nossa cozinha já não comporta as encomendas. Vamos devagarzinho para não queimar etapas, construindo aos poucos”, planeja Samanta.
 
Mulheres à frente
Para Naya, “a mulher preta tem muito pé no chão porque a realidade bate muito na cara. Bateu na minha quando o banco não quis me fazer um empréstimo. Então ela precisa contornar o sistema. É constante”.
 
Segundo Thaís Oliveira, do Sebrae, as mulheres são de fato a maioria esmagadora de empreendedores negros. “Há vários fatores, como a necessidade da mulher obter ou gerar alguma renda”.
 
Homens negros muitas vezes são deslocados desde a adolescência para trabalhos braçais: entregadores, profissionais de construção e manutenção. A mulher ocupa muitas vezes um espaço doméstico. A partir desse lugar, elas começam a pensar e a criar coisas para gerar renda pra família: cozinhando, costurando, cabeleireiras, doceiras.
 
Não é um caso tão diferente do de Samanta e Carla, depois de começado o negócio, o objetivo supera a sobrevivência. “A Pretas de Barro tem essa função de estimular outras mulheres negras de ressignificar suas vidas. A Pretas vai além do doce, ela toca em vários aspectos da nossa vida e da nossa luta”, completa Carla.


Carla e Samanta, da Pretas de Barro (Foto: Lethycia Faria)
 
Então, veio a pandemia
Segundo dados do Sebrae, os empresários negros também foram mais afetados pela pandemia. Na comparação, 18% deles estão com seus negócios interrompidos temporariamente ou fecharam de vez diante do índice de 15% entre os brancos, 76% relatam diminuição no faturamento (contra 73%), 36% têm dívidas em atraso (contra 27%), 12% conseguiram crédito em banco (contra 18%) e 46% relatam ainda ter dificuldades para manter o negócio (contra 41%).
 
Além dos desafios de praxe, a pandemia foi o empurrão que faltava para devastar grande parte dos pequenos negócios brasileiros. Para os empreendedores negros de Goiás, foi necessário buscar alternativas e reunir forças através do coletivismo e da colaboração. E foi também o momento de voltar todos os esforços para as plataformas on-line.
 
Muito desse fortalecimento veio de um grupo de WhatsApp: o Força Preta reúne cerca de 30 empreendedores negros (com apenas dois homens) que buscam se apoiar no que for preciso para sobreviver ao mercado. Segundo Naya, o on-line hoje é o principal canal de vendas da marca, mesmo com a retomada de atendimento por hora marcada no ateliê.
 
Para a Pretas de Barro, o Instagram se tornou importante em 2020, e a pandemia também foi um momento de aprendizado. “A gente precisa estudar, aprender, e fui atrás de cursos. Buscando valorizar os doces e as frutas do Cerrado”, disse Carla. No último ano e meio, as irmãs tiraram proveito de aulas e cursos on-line tanto na área de administração quanto na gastronômica.
 
O Instagram e o Facebook se tornaram as principais ferramentas de divulgação da N Jinga. Erika conta que o Força Preta tem sido muito importante. “Temos feito um esforço coletivo para continuar sobrevivendo com a crise gerada pela pandemia. Temos feito uma articulação para fortalecer os nossos negócios. Sozinho é muito mais difícil. Temos encontrado soluções de forma conjunta para continuar produzindo e vendendo”, diz.

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