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Frederico Oliveira

Diversidade de gênero, Narciso e Eco: o caso Thammy

| 05.08.20 - 15:04
Na videoperformance “Narcissus and Echo” – que tive a grata oportunidade de ver, na exposição “Desobediências poéticas e a urgência da descolonização do pensamento”, da Pinacoteca de São Paulo –, Grada Kilomba, escritora e artista multidisciplinar portuguesa, faz uma crítica ao sistema colonialista e ao racismo dele decorrente, trazendo à tona os mitológicos personagens gregos Narciso e a ninfa Eco.
 
Tanto Narciso quanto Eco tinham sido condenados pelos deuses: ele, a não ver a sua imagem refletida no espelho, sob a pena de morrer, embora tenha sido presenteado com uma exuberante beleza; e ela,  por sua tagarelice, a apenas reproduzir os últimos sons daqueles que com ela se comunicassem.
 
Certo dia, em um passeio pelo bosque, Narciso percebeu que estava sendo observado por alguém – era Eco que, a distância, perto do lago, admirava a formosura do rapaz. Ao perguntar quem ali estava, Narciso ouviu a própria voz, reverberada pela ninfa, e apaixonou-se. Aproximando-se do lago, ele viu, maravilhado, a sua imagem refletida, e acreditando que a voz viria dela, mergulhou, afogando-se no próprio reflexo. 
 
Grada Kilomba utiliza esses personagens para questionar a naturalização de um sistema colonialista, que rejeita as diferenças e torna invisíveis as históricas opressões. Na denúncia da artista, o racismo, cuja “voz”, assim como a de Eco, representa a reverberação das expectativas narcísicas, também é uma problemática branca. 
 
Levando-me a refletir para além do recorte racial, a videoperformance me remeteu às questões de gênero e de sexualidade, no que diz respeito à histórica perseguição e à estigmatização daqueles que não se adequam ao padrão hetero-cis-normativo. Logo, podemos dizer que a homofobia e a transfobia são problemáticas heterocisgêneras. 
 
Para tanto, vale observar que o padrão, responsável por normatizar o caminho dos corpos, engessando-os a reproduzir expectativas de um sistema que limita a condição do indivíduo a um órgão genital e a um aparelho reprodutor, também tem raízes colonialistas e racistas. Isso se dá, sobretudo, por conta de um apagamento histórico de existências da homossexualidade, assim como de outras expressões de gênero, como as encontradas em tribos indígenas nas Américas, dizimadas pelo violento processo de colonização.  
 
Falo tudo isso para pensar sobre o endeusamento cego de crenças e de convicções pelas pessoas; da mínima disposição que elas têm para sair de suas bolhas, seja por medo, seja por comodismo, seja por covardia. 
 
Narciso, ludibriado pela reverberação de sua voz e maravilhado pelo reflexo de sua imagem, foi arrogante e, parafraseando Caetano Veloso, achou feio tudo aquilo que não era espelho, ou seja, o que estava fora do seu padrão, do considerado, por ele, belo e correto. Ademais, podemos interpretar o trecho, no qual o ilustre compositor diz que “a mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, como o antiquado pensamento, que reproduz expectativas, medo e imposições limitantes aos corpos, que não se adequam ao padrão socialmente convencionado, em uma tentativa perversa de promoção de pânico social, por meio de fantasiosas falácias e teses conspiratórias de que as liberdades sexuais e de performatização de gênero nos conduziria à degeneração social. 
 
E não menosprezemos a história! Ela nos dá conta de que as discussões abolicionistas foram rechaçadas violentamente por muitos, impulsionando o amedrontamento, pela falsa ideia de que a miscigenação racial levaria à degeneração do tecido social.
 
Não é muito diferente o curso da história da emancipação da mulher, principalmente nas discussões antecessoras à Lei do Divórcio, em que lideranças religiosas enviaram missivas ao Congresso Nacional (eu já tive oportunidade de estudar tais documentos), em favor da manutenção da indissolubilidade do casamento, que muitas vezes aprisionava mulheres em relações abusivas, suscitando o mesmo tipo de amedrontamento, disseminado entre os fiéis.
 
É impressionante como o ser humano tem dificuldades de acolher e de respeitar aquilo que não reflete a sua própria imagem, considerando o diferente uma ameaça. Eis o porquê a campanha da Natura de Dia dos Pais é tão incômoda, ao promover a imagem de Thammy – um pai transexual! Mesmo tendo a referida marca realizado outros vídeos de representatividade, com diversos modelos de pais, a visibilidade trans foi suficiente para a onda de cancelamento e de boicote dos seus produtos. 
 
O afogamento de Narciso é a morte e, para mim, significa a incapacidade do exercício da humanidade. Quem não respeita o diferente, é narcisista ególatra e, por sua vaidade, está morto por dentro, por aceitar apenas aquilo que entende como certo, mesmo diante de tantas outras vivências, advindas da diversidade étnico, cultural, religiosa, sexual e de gênero.
Mas ainda há tempo para não se afogar – basta se libertar!
 
*Frederico Oliveira é advogado, professor, artista visual e ativista pelos Direitos Humanos.
 

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