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Jales Naves

A oportuna revisão do cerco a Jadotdville

| 29.10.20 - 09:52
A reconstrução da história, com nova interpretação de momentos específicos, tem permitido fazer justiça e criar uma nova compreensão de acontecimentos não tão distantes.

É o que se pode extrair do filme “The Siege of Jadodtville”, drama histórico de 2016, escrito por Kevin Brodbin e dirigido por Richie Smyth, com base no livro “Siege at Jadotville: The Irish Army’s Forgotten Battle”, de Declan Power.

Trata-se do cerco à cidade de Jadotville, 80 milhas a noroeste de Elisabethville, capital da província de Katanga, na República do Congo – o país acabara de conquistar a independência e vivia uma crise. Para proteger sua população, a Organização das Nações Unidas (ONU) enviou uma missão militar de paz, integrada por 158 oficiais e soldados da Irlanda, jovens e sem maior envolvimento com conflitos armados, que não foi bem recebida pela população e ainda teve que enfrentar as forças katanganesas, numericamente mais expressivas, com armamento mais pesado e lideradas por experientes mercenários. Houve o confronto, os irlandeses se saíram muito bem, mas, isolados, não receberam ajuda e ficaram sem munição, o que os levou a se renderem; esse fato prejudicou-os por muito tempo.

Passados mais de 40 anos e muita discussão esse episódio foi revisto e os heroicos integrantes dessa missão tiveram resgatado e devidamente reconhecido o seu papel nessa intervenção militar.
 
O Congo foi colonizado pela Bélgica, França e Portugal. O Congo Belga, desde o final do século XIX, foi propriedade particular do rei Leopoldo II, até sua morte. O Congo Francês controlava a região a partir do final desse século, enquanto os portugueses tinham o controle sobre o continente já no período de expansão marítima, no século XV. A Conferência de Berlim, de 1885, ratificou a divisão territorial da região entre esses três países.       

Esse controle do continente africano pelos europeus aconteceu até a metade do século XX, quando boa parte dos países africanos conquistou sua independência após a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, esses países se viram envolvidos no contexto da Guerra Fria, e justamente nesse período é que que ocorreu o cerco de Jadotville.

O Congo conseguiu sua independência em 1960 e como a maioria dos países africanos que obtiveram sua libertação do domínio europeu se encontrava em crise institucional. Nesse ano foi criada a República Democrática do Congo e Patrice Lumumba, que tinha o apoio da URSS, foi eleito primeiro-ministro congolense. Moise Tshombe, governador da província de Katanga, um político anticomunista e que tinha apoio de grupos capitalistas, conforme artigo de Pedro Drummond, rompeu com o governo nacional e criou uma província autônoma, rica em recursos minerais, como diamantes, estanho e cobre, e desejada por grandes exploradores de minério.

Com a Guerra Civil instalada a ONU decidiu intervir. Com a aprovação do seu Conselho de Segurança, foi criada a Operação das Nações Unidas no Congo (ONUC), que enviou tropas de paz para o local. O secretário-geral da entidade, Dag Hjalmar Agne Carl Hammarskjöld, nomeou Conor O’Brien, diplomata irlandês, como seu representante no Congo, e que enviou como uma das principais tropas para a região de Jadotville a Companhia A, do 35º Batalhão de Infantaria do Exército irlandês, liderada pelo comandante Pat Quinlan.

Numa situação não explicada, pouco antes da Companhia A chegar a Jadotville duas outras companhias de forças da ONU, uma sueca e uma irlandesa, foram retiradas da cidade, deixando-a praticamente sozinha e isolada no local. A situação começou a se complicar para essa tropa quando em Elisabethville se iniciou um confronto entre as forças da ONUC e katanganesas, desencadeando uma série de medidas em represália, como a tomada da ponte que ligava Jadotville à capital da Katanga, resultando no isolamento dos irlandeses e no conflito.

A Companhia A do 35º Batalhão de Infantaria do Exército irlandês, como explicou Albert Caballé Marimón, era formada, em sua maioria, por homens no início dos 20 anos e que não tinham entrado em combate. Tiveram alguma experiência e desenvolveram um relacionamento sólido enquanto treinavam e patrulhavam a região nas semanas anteriores. Estavam armados com modernos rifles FN FAL (há fontes que indicam que eles usavam velhos rifles Lee Enfield da Primeira Guerra Mundial). No entanto, grande parte de seu equipamento era da Segunda Guerra, como metralhadoras Vickers refrigeradas a água, morteiros de 60 mm e uma metralhadora leve Bren.

O Secretário-geral da ONU recebeu queixas do Ministro das Relações Exteriores da Bélgica, dizendo que colonos belgas e a população de Jadotville estavam desprotegidos e temia por sua segurança. No início de setembro, a Companhia A foi enviada à cidade, alegadamente para proteger seus cidadãos. A unidade não foi bem recebida pela população local, pois havia um forte sentimento anti-ONU na região.

Em 13 de setembro de 1961 foi lançada a Operação Morthor, com o objetivo de assumir o controle de Katanga, levando a uma batalha de oito dias entre a ONUC e as forças katanganesas. As forças da ONU acabaram tomando algumas posições em Elisabethville. O’Brien, que era efetivamente o comandante da ONU no Congo, autorizou a ação. Na época Hammarskjöld afirmou que não sabia que a operação estava em curso. Há fontes que diziam que ele cumpria ordens de Hammarskjo?ld, e outras que agiu por conta própria.

O fato é que Hammarskjo?ld queria que o problema de Katanga fosse resolvido antes da próxima Assembleia Geral das Nações Unidas; a conduta de ambos no Congo ainda é uma questão discutida. Outro fato é que a Operação Morthor foi omitida de Quinlan.

Percebendo o nível de hostilidade a seus homens em Jadotville, o Comandante começou a organizar um perímetro defensivo em torno de sua base. Ordenou aos homens que cavassem trincheiras, armazenassem água e carregassem suas armas o tempo todo.

Logo após o início da Operação Morthor, os katanganeses tomaram uma ponte sobre o rio Lufira, na estrada ligando Jadotville à capital Elisabethville, isolando os irlandeses. A seguir, atacaram a Companhia A.

O que inicialmente parecia uma missão simples terminou numa luta encarniçada, colocando os irlandeses contra um inimigo mais bem armado e numericamente muito maior. A força katanganesa, de três mil homens, que alguns diziam ser entre três mil e cinco mil, era composta na maior parte por guerreiros da tribo Luba, apoiados por mercenários belgas, franceses e rodesianos. Era comandada por René Faulques, ex-coronel do Exército francês e paraquedista da Legião Estrangeira, contratado por Tshombe. Estavam equipados com armamento leve e pesado, que incluía morteiros de 81 mm e um canhão francês de 75 mm, e com apoio aéreo de um jato de treinamento Fouga Magister, armado com metralhadoras e bombas.

Em 13 de setembro, às 7h40, enquanto a maior parte dos irlandeses assistia a uma missa, as forças katanganesas iniciaram o ataque. Um sentinela irlandês disparou um tiro de alerta mobilizando a companhia. A batalha que se seguiu durou cinco dias. Os ataques eram precedidos por bombardeios dos morteiros de 81 mm, pelo fogo do canhão de 75 mm e por passagens do jato Fouga Magister; em seguida eram enviadas ondas com cerca de 600 homens cada uma. Os ataques com bombas destruíram os veículos da companhia e danificaram edifícios da posição irlandesa.

Mesmo muito superada em números, a Companhia A mostrou precisão e eficácia ao destruir boa parte das posições de morteiros e metralhadoras katanganesas, com disparos certeiros de seus próprios morteiros de 60 mm. Os ataques foram repelidos várias vezes, mas os katanganeses estavam se aproximando das posições irlandesas. Quinlan repetidamente solicitou reforços, que demoravam a chegar; ele negociou um cessar-fogo algumas vezes com Faulques e com o Prefeito belga de Jadotville na tentativa de ganhar tempo para a chegada de reforços ou suprimentos, mas sem sucesso. Um piloto norueguês de helicóptero chegou a trazer água, que veio em latas de gasolina velhas, tornando-a imprópria para consumo humano. Essa foi a única ajuda que Quinlan obteve.

As forças da ONU até tentaram socorrer a Companhia A, com tropas suecas, irlandesas e indianas, mas como os katanganses tinham tomado o controle da ponte que ligava Jadotville, era impossível por vias terrestres a chegada de reforços e suprimentos, e por vias aéreas o fogo dos locais era muito grande. Na única tentativa que houve de ajuda, o resultado foi longe do imaginado, impossibilitando qualquer tentativa de apoio aéreo. Diante desse panorama o comandante Quinlan se via obrigado a se render.

Pouco antes, o Secretário Geral da ONU foi a Katanga para tentar discutir um cessar-fogo com Tshombe. Entretanto, Hammarskjo?ld não chegou ao seu destino, pois o avião em que viajava caiu quando se aproximava do aeroporto, matando quase toda a tripulação. Segundo as autoridades locais o acidente ocorreu por erro do piloto, mas a ONU nunca aceitou essa conclusão. Até hoje, a morte dele continua um dos grandes mistérios da ONU.

Com a morte de Hammarskjo?ld, um cessar-fogo não ocorreu, e o Comandante Quinlan foi forçado a se render, devido às circunstâncias que a sua Companhia estava. Saldo da batalha: “as forças katanganesas sofreram pesadas perdas, com 200 a 300 mortos, incluindo 30 mercenários, e entre 300 e 1.000 feridos; os números variam conforme a fonte. A Companhia A não sofreu nenhuma fatalidade e teve apenas cinco homens feridos.”

Os irlandeses em relação à rendição estavam receosos por suas vidas depois das perdas que provocaram aos adversários, mas ficaram presos somente cinco semanas, que foi o tempo necessário para a ONU negociar a libertação da Companhia.

Após essas negociações, os soldados voltaram para a Irlanda e mesmo tendo enfrentado uma força muito superior e resistido ao máximo, os irlandeses, ao retornar, não foram bem recebidos. Os motivos para tal situação não são conhecidos, mas especula-se que o ocorrido no Congo pode ter causado vergonha pela rendição para alguns integrantes do governo ou para ocultar erros políticos cometidos.

A falta de reconhecimento às tropas de Jadotville provocou uma insatisfação aos soldados que lá estiveram, e só chegou quando, em 2005, criou-se um marco comemorativo reconhecendo-a no antigo quartel de Custume em Athlone, Irlanda. Em 2016, o governo irlandês conferiu uma Citação Presidencial de Unidade à Companhia A, e em outubro de 2017, foi feita uma placa em homenagem ao Comandante Quinlan no Condado de Kerry, sua terra natal. Oito sobreviventes receberam medalhas especiais em Athlone também em 2017.
 
 
*Jales Naves é jornalista e escritor, presidiu a Associação Goiana de Imprensa (AGI) em dois mandatos consecutivos (1985-1991)

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