Na obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, no capítulo XXI, intitulado “O almocreve”, Machado de Assis desenvolve uma narrativa muito interessante acerca do valor de uma vida. Em poucas palavras, ele descreve o seguinte: o protagonista da obra, Brás Cubas, está a cavalgar e acaba desequilibrando-se em sua sela, de modo que seu animal quase se pusesse a correr – com o risco de derrubá-lo –, se não fosse por um almocreve que conseguiu parar o jumento. Vê-se, então, que o almocreve, isto é, um tocador de cavalos, salvou a vida de Brás Cubas, o qual, em sinal de gratidão, decidiu que daria uma quantia em dinheiro ao pobre trabalhador.
Inicialmente, ele pensou em dar três das cinco moedas de ouro que carregava consigo, mas, ao ver as roupas paupérrimas do almocreve, concluiu que bastava apenas uma moeda de prata. Ao final, quando as entregou e percebeu a felicidade exagerada do trabalhador, disse ter sentido remorsos, pois viu que os trocados de cobre que trazia consigo dariam o mesmo efeito.
Trata-se, nesse sentido, de uma crítica à postura da classe dominante em face dos oprimidos socialmente. Enquanto os indivíduos das classes mais abastadas devem suas vidas, literalmente, àqueles que são os mais explorados, ao final do mês, são revertidas a estes apenas esmolas acompanhadas de muito remorso. Essa é a lógica do sistema capitalista: o que sustenta a riqueza é a pobreza.
Assim sendo, no atual contexto pandêmico, o Estado brasileiro não tem um comportamento muito diferente do de Brás Cubas: ele poderia dar as três moedas de ouro, porém ao ver o pauperismo à sua frente, viu que uma moeda de prata era o suficiente para silenciar as massas.
Recentemente, saiu uma notícia de que, na pandemia, 11 novos bilionários brasileiros entraram na lista da Forbes e, no mesmo dia, a fome no Brasil cresceu pela primeira vez em 17 anos. Isso mostra que a doença causada pelo covid-19 tem sintomas que vão além da fisiologia humana. Neste país, o maior efeito colateral da pandemia foi o aumento da desigualdade social. Diante desse cenário, é visível que o Estado deveria redirecionar mais verbas para a saúde e para o auxílio emergencial, de modo a evitar que a fome mate mais do que o próprio coronavírus.
Entretanto, a situação deplorável do povo brasileiro faz com que o Poder Público não queira agir de modo distinto ao de Brás Cubas e, enquanto as pessoas, em muitas cidades, não podem voltar a trabalhar, seja devido a medidas de isolamento, seja devido ao medo de se contaminar, sem o auxílio a quem mais precisa, a população tenderá a padecer na miséria, contentando-se com as esmolas dadas com remorso que a muito custo recebem.
*Murilo Amaral do Prado Castro é escritor e professor de português