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Gismair Martins Teixeira

O infinito em números e palavras

| 15.09.21 - 17:39
 
No ano de 2015 chegava às salas de cinema a cinebiografia de Srinivasa Aiyang?r Ramanujan, um dos maiores e mais extraordinários gênios matemáticos da história. Com roteiro adaptado e dirigido pelo cineasta britânico Matt Brown e estrelado por Dev Patel, ator indiano que encarnou seu conterrâneo na telona, além de astros renomados, como Jeremy Irons e Tob Jones, o roteirista apresenta a sua versão da biografia de Ramanujan escrita por Robert Kanigel.
 
Autor de feitos simplesmente notáveis no campo da matemática avançada a partir de um acentuado e particularíssimo autodidatismo, o que há de mais extraordinário na genialidade de Srinivasa Ramanujan é a forma com que descobria fórmulas matemática sofisticadas, dentre elas as que atualmente são usadas para o esforço científico da física para compreender o que se passa no interior de um buraco negro, evento astronômico que desafia os melhores cérebros da astrofísica mundial contemporânea.
 
Orientado por Harold Hardy, um dos mais brilhantes matemáticos britânicos da história, que se proclamava ateu convicto, o filme traz o momento impactante em que o orientador coloca o gênio indiano contra a parede, perguntando-lhe como ele chegava àquelas fórmulas com tanta precisão e facilidade. Ramanujan, então, revela o inusitado: aquelas equações eram apresentadas a ele em sonho pela deusa Namagiri, do panteão hinduístia, de que sua família era devota. As consequências de sua revelação acerca da inacreditável metodologia, por assim dizer, são exploradas ao longo do filme de forma bastante sensível por Matt Brown, pois elas renderam, como seria natural, muita polêmica.
 
A curiosa história de Srinivasa Aiyang?r Ramanujan remete a ilações em torno da capacidade humana para o conhecimento, que é simbolizada em várias culturas através de mitos e lendas, como a da árvore do conhecimento do bem e do mal na tradição judaico-cristã e o mito de Prometeu no helenismo, que remetem à complexa relação entre o conhecimento e a ética, ou ausência dela, que se lhe segue. O contexto biográfico de Ramanujan sugere, ainda, o quanto o estudo em torno do fenômeno da cognição humana representa um fascinante campo de investigação em torno da psiquê.
 
A partir da década de 80 do último século, as abordagens sobre a inteligência ganharam uma nova perspectiva. Um dos pioneiros nesse processo de construção de um novo olhar sobre a cognição é o norte-americano Howard Gardner, que estabeleceu a noção das inteligências múltiplas. Já não se tratava mais de uma perspectiva que contemplasse somente as ciências naturais, em suas abordagens de cunho mecanicista com lastros piagetianos que determinavam o quociente de inteligência.
 
Nesse novo contexto teórico, a genialidade se torna passível de expressão e apreensão em campos distintos da atividade humana. O gênio agora transcende a figura do indivíduo profundamente versado em matemática e física, abrangendo as mais diversificadas áreas de atuação. A inteligência passa, então, a ser considerada da maneira multifocal, contemplando até mesmo a expressão corporal do indivíduo. O jogador Pelé, por exemplo, representaria o protótipo da inteligência espacial aplicada à prática futebolística. No balé, os expoentes da área também seriam gênios de uma espacialidade específica.
 
Conforme a classificação gardneriana, jogadores e bailarinos extremamente habilidosos possuem respectivamente a inteligência espacial e a físico-cinestésica. A interação entre as múltiplas inteligências e sua expressividade em indivíduos dotados de altas habilidades, historicamente, mereceria um olhar investigativo mais acurado. A filosofia da linguagem, por exemplo, a partir das abordagens lógico-matemáticas e linguísticas de pensadores como Gottlob Frege, Ludwig Wittgeinstein e Bertrand Russell apresenta a instigante correlação entre duas modalidades de inteligência da proposição de Gardner: a lógico-matemática e a linguística.
 
Em seus estudos, que foram publicados em obras diversas, Howard Gardner considera a possibilidade de que possam existir outras modalidades de inteligência que estariam à espera de serem descobertas e detalhadas em pesquisas futuras. Assim, ainda que de maneira inicialmente exploratória, pode-se pensar em termos de uma inteligência mística relacionada especificamente ao transe, considerado como estado alterado de consciência, de cuja expressão surjam conhecimentos que possam ser apresentados à consideração e à análise cultural como um todo.
 
No âmbito do imaginário espiritualista e espírita, por exemplo, a mediunidade seria uma representação desse tipo de inteligência, capaz de estabelecer uma conectividade com dimensões espirituais da existência. Segundo o imaginário dessas correntes espirituais, Ramanujan seria um médium cujas faculdades oníricas se caracterizam a partir do contato com a deidade hindu e a consequente retransmissão ao comum dos mortais dos seus ensinamentos transcendentes no campo da matemática.

Uma narrativa do infinito
A inteligência gardneriana mais evidente, porém, no matemático indiano, é a lógico-matemática. No Brasil, a personalidade do médium espírita Chico Xavier poderia ser pensada num equivalente de Ramanujan como expressão da inteligência linguística. Coautor, conforme a cultura espírita, de cerca de 560 livros, Xavier não cursou mais que as séries iniciais da formação básica. Isso não impediu, todavia, a sua vastíssima produção escrita que, segundo ele, era compartilhada com uma profusão de seres espirituais radicados no além, numa produção literária geneticamente evocativa das fórmulas matemáticas do gênio indiano.
 
Sua primeira publicação, no já distante ano de 1932, intitulada Parnaso de Além-Túmulo, trazia a produção poética de duas dezenas de autores da poesia lusófona de estilos, épocas e escolas distintas. Essa obra em específico já foi objeto de dissertação de mestrado nos cursos de Letras da Unicamp-SP e na UFG de Catalão. No programa Pinga Fogo, de 1971, da Rede Tupi de Televisão, em recorte disponível no youtube, no link Chico Xavier e Augusto dos Anjos - YouTube, o médium Xavier narra de maneira bem humorada seu encontro com Augusto dos Anjos, um dos poetas presentes em Parnaso de Além-Túmulo, descrevendo suas dificuldades com os jargões cientificistas do pré-modernista brasileiro.
 
Augusto dos Anjos é dono de uma verve particularíssima na poesia brasileira, com poemas remissivos a diversos ramos das ciências da natureza, elaborando versos mitopoéticos com termos da física, da química e da biologia. Em Parnaso de Além-Túmulo, o poeta redivivo por Chico Xavier concretiza em verso específico um dos ethos característicos da interseção entre a poesia e o que ela teria de profético. No poema intitulado “Evolução”, escreve Chico Xavier/Augusto dos Anjos: 
 
Se devassássemos os labirintos
Dos eternos princípios embrionários,
A cadeia de impulsos e de instintos,
Rudimentos dos seres planetários;
Tudo o que a poeira cósmica elabora
Em sua atividade interminável,
O anseio da vida, a onda sonora,
Que percorrem o espaço imensurável;
Veríamos o evolver dos elementos,
Das origens às súbitas asceses,
Transformando-se em luz, em sentimentos,
No assombroso prodígio das esteses;
No profundo silêncio dos inermes,
Inferiores e rudimentares,
Nos rochedos, nas plantas e nos vermes,
A mesma luz dos corpos estelares!
É que, dos invisíveis microcosmos,
Ao monólito enorme das idades,
Tudo é clarão da evolução do cosmos,
Imensidade nas imensidades!
Nós já fomos os germes doutras eras,
Enjaulados no cárcere das lutas;
Viemos do principio das moneras,
Buscando as perfeições absolutas. 
 
No dia 11 de janeiro de 2017, conforme noticiaram os periódicos de divulgação científica dessa data, a ciência batia o martelo em torno da expressão poética do astrônomo Carl Sagan, que a partir dos anos 60 do século passado afirmava, em seus discursos, que somos poeiras das estrelas. Conforme pesquisa científica divulgada, todos os corpos compartilham 97% de material atômico comum às estrelas.
 
Assim, a deusa Namagiri teria mostrado as fórmulas matemáticas do infinito a Ramanujan; o poeta Augusto dos Anjos teria ditado versos a Chico Xavier sobre o infinito e seu transformismo. Tanto o indiano quanto o brasileiro se constituem como exemplos extraordinários das inteligências lógico-matemática e linguística respectivamente, merecendo pesquisas que incidam sobre suas performances cognitivas e culturais.

*Gismair Martins Teixeira é pós-Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG.
 

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