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Gismair Martins Teixeira

A sutil alegoria de um filme francês

| 04.03.22 - 14:13
A alegoria é uma figura de linguagem de natureza retórica que do ponto de vista histórico conheceu altos e baixos em sua apreciação por parte dos intelectuais ao longo do tempo. Definível como sendo um recurso discursivo que amplia o significado para além do literal, ela ainda apresenta uma instigante abordagem instrumental na análise tanto de obras literárias quanto de produções outras que intercambiam suas narrativas com o etos da literatura.
 
Os caminhos percorridos pela alegoria em sua ocorrência cultural são infinitos, podendo ela apresentar-se sob os mais variados matizes e expressões. Os exemplos de seu percurso são infindáveis. No ano de 1853, Delphine de Girardin aportava à Ilha de Jersey, situada no Canal da Mancha, entre a França e a Inglaterra, para uma temporada de visita a seu ilustre amigo, o escritor Victor Hugo.
 
Na bagagem, a intelectual francesa trazia uma novidade que encontrou grande ressonância na alma do poeta e romancista, seu conterrâneo. Tratava-se da nova moda que empolgava os salões europeus, as mesas girantes. Importada da América do Norte, a mania era caracterizada pela prática de sessões de contato mediúnico com os espíritos nos saraus da Europa do Oitocentismo.
 
Esse tipo de reunião foi bem documentado e tem servido de pesquisa por parte de historiadores e antropólogos que estudam o surgimento do espiritismo sistematizado por Allan Kardec na França. Delphine de Girardin apresentou a novidade a Hugo, que de imediato se tornou adepto da prática mediúnica. De suas reuniões de contato com o além, o escritor do romantismo literário produziu algumas atas em que reproduz seus diálogos.
 
No Brasil, as conversações ocorridas nessas reuniões foram coligidas e publicadas pela Três Editora sob o título "O Livro das Mesas. As Sessões Espíritas da Ilha de Jersey". Muitas das entidades espirituais que se apresentavam nas sessões da Ilha de Jersey assinavam suas dissertações filosóficas com nomes alegóricos como, por exemplo, A Sombra do Sepulcro. Em suas tertúlias com Hugo, apresentavam elas instigantes reflexões em torno desse tema onipresente nas cogitações humanas.
 
  O trajeto do eminente escritor pelo universo do oculto, bem como a sua morte, servem de preâmbulo alegórico ao filme francês “O Baile das Loucas" (Le Bal Des Folles). Produzido no ano de 2021, com roteiro de Mélaine Laurent, que adaptou o livro homônimo de Victoria Mas, o filme traz em sua narrativa o dramático relato cinematográfico do período em que a dança das mesas ainda era tema vivo na memória coletiva da Europa.
 
De forma emblemática, a celebridade de Victor Hugo abre a película, quando uma tomada aberta de câmera mostra a multidão que acorreu ao velório do criador de personagens célebres, como Jean Valjan de “Os Miseráveis”. Na cena seguinte, já tem o espectador a protagonista, Eugéne, a comentar sobre o grande número de pessoas que compareceram ao enterro de Hugo sob o olhar admirado da família à mesa de jantar.
 
À semelhança de Charles Hugo, filho do poeta francês, que funcionava como médium nas sessões de que seu pai tomava parte, muitas vezes com a incumbência de redigir as atas, Eugéne também possuía o dom de intercâmbio ostensivo com o invisível. Na história contada em “O Baile das Loucas”, porém, a jovem médium não teve a mesma sorte do filho de Victor Hugo, cuja família toda compartilhava da crença no além.
 
Possuidora de um caráter rebelde para os padrões sociais burgueses da França do período, Eugéne desagradava aos pais pelos seus modos contrários à etiqueta exigida para uma moça cujo projeto de vida deveria ser o de arranjar um bom casamento. Em seus atos de rebeldia, a jovem sensitiva fugia para cafés parisienses de bairros mais afastados para entregar-se à leitura de poesia, obedecendo a um hábito da época. Em uma dessas escapadas, observa um jovem em mesa à frente da sua, que lê uma obra de título estranho.
 
Percebendo que era observado, o rapaz se aproxima com intenções de cortejar a sua suposta admiradora. Para seu desapontamento, ela informa que estava olhando não para ele, mas para a capa do livro que ele tinha em mãos, que despertou sua curiosidade pelo título inusitado: “Le Livre des Esprits” (O Livro dos Espíritos). De forma galante, o desconhecido lhe empresta o exemplar para que ela pudesse ler calmamente em casa.
 
A obra tem um impacto extraordinário sobre Eugéne, que em transes nos quais julgava enlouquecer via, ouvia e dialogava com os seres espirituais que se manifestavam a ela em casa. Mas as ocorrências mediúnicas de que era objeto se tornaram insuportáveis para a família. Julgando-a louca, os pais deliberam interná-la em famosa instituição de tratamento feminino da época, a La Salpêtrière, dirigida pelo Dr. Jean-Martin Charcot, eminente médico com quem Sigmund Freud estudou na juventude.
 
MARTÍRIO E REDENÇÃO
A experiência da protagonista de “O Baile das Loucas” como interna do hospital La Salpêtriére foi marcada pelos extremos do martírio e da redenção que parecem ser a tônica na vida dos indivíduos dotados da sensibilidade extrema de percepção do oculto, aos quais o espiritismo kardequiana denomina médiuns.
 
A cinebiografia de sensitivos como Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco, já disponíveis no acervo cinematográfico brasileiro, registra os obstáculos que esses personagens enfrentaram em suas jornadas, tendo como pano de fundo a ignorância de seus contemporâneos em relação às suas condições psíquicas especialíssimas.
 
Em um de seus cerca de 300 livros psicografados, intitulado “Nos Bastidores da Obsessão”, que no contexto cultural espírita foi escrito por uma entidade espiritual que em vida física se chamava Manoel Philomeno de Miranda, há um relato amplo sobre o hipnotismo e a histeria que foram estudados na Salpêtrière por Charcot e seus discípulos, numa referencialidade intertextual remissiva à temática de “O Baile das Loucas”.
 
Na Salpêtrière, Eugéne foi entregue aos cuidados da equipe de Charcot, em sua maioria rude. Interrogada de maneira grosseira por um dos médicos sobre o porquê de sua internação, se era mesmo pelo motivo de que ela via e falava com os mortos, a protagonista responde, com interessante frase de efeito, que não via e nem falava com mortos, mas sim com os espíritos. Sua resposta evoca importante intertexto evangélico em que Jesus afirma ser necessário deixar aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos.
 
Sob tratamentos que mais lembravam torturas medievais aplicadas aos acusados de bruxaria, como a imersão por horas em uma banheira cheia de gelo, sua estada na Salpêtrière só não se tornou pior por conta de seus dotes mediúnicos, que pôs em contato a enfermeira chefe com sua irmã já falecida, por quem nutria grande amor fraterno, após a leitura de “O Livro dos Espíritos” emprestado por Eugène.
 
“O Baile das Loucas” apresenta em algumas cenas muito da estética naturalista do cinema francês, com cenas que podem incomodar os mais pudicos. Em uma casa de internação para mulheres com severos problemas psiquiátricos, os banhos eram coletivos e a higiene absoluta, acompanhada de bons modos, um luxo. Uma vez por ano, a Salpêtrière oferecia um baile público para que a sociedade pudesse interagir com as internas. Daí o título do filme.
 
É nessa oportunidade que a enfermeira chefe, que constatara a sanidade de Eugéne, mas sem poder convencer os demais de que a mediunidade era um fato e não um distúrbio mental, elabora um plano para que a sensitiva fuja de La Salpêtrière. O plano obtém êxito. Eugène estava livre. O tempo passa e ambas se correspondem afetuosamente, com a médium ainda transmitindo mensagens do espírito da irmã da ex-enfermeira, agora convicta da realidade do intercâmbio mediúnico.
 
A jovem sensitiva encerra sua carta em tom de profunda alegria e otimismo, pois estava vivendo em um lugar, que ela não informa a localidade, onde todos respeitavam a sua condição de intérprete do mundo espiritual e a amavam por isso. Intencional ou não, a sua fala final pode ser compreendida como uma sutil alegoria de uma parte da realidade social e antropológica de que desfrutam no Brasil os indivíduos sensitivos em geral e, em particular, aqueles ligados à doutrina sistematizada por Allan Kardec na França do século 19.

*Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO. Doutor em Letras pela UFG; professor do Ciranda da Arte/Seduc-GO.
 

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