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Procusto, segundo a mitologia grega, era o dono de uma estalagem localizada na travessia sagrada entre Atenas e Elêusis que possuía o costume de convidar todo peregrino que por ali viajava para passar a noite lá. Se aceitassem, era-lhes oferecido um luxuoso quarto com cama de ferro. Ele, contudo, mantinha nefasto hábito: deformar os hóspedes para que se encaixassem perfeitamente no leito que lhes provia. Caso o visitante fosse muito alto, Procusto amputava-lhe os membros e, se menores, eram esticados até atingirem o comprimento ideal. Ele eventualmente foi morto pelo herói Teseu e sua lenda persevera os séculos como advertência contra aqueles que buscam impor um critério arbitrário de igualdade sem observar os óbvios danos decorrentes deste esforço. O cientista político austríaco Erik von Kuehnelt-Leddihn dedica seu livro de 1943 “The Menace of the Herd” (A Ameaça do Rebanho, em tradução livre) utilizando a alegoria de Procusto para criticar os efeitos negativos da doutrina igualitária enquanto filosofia política, onde o poder estatal é utilizado para forçar indivíduos a se enquadrarem em padrões desenhados por tecnocratas e “intelectuais”.
O fato de resultados econômicos diferirem entre indivíduos, grupos e nações levanta questionamentos que recebem as mais diversas análises. A esquerda nos últimos duzentos anos lançou duas hipóteses que buscam explicar a emergência desta discrepância: o coletivismo classista crê que os desafortunados são explorados pelos mais abastados, enquanto o coletivismo etnocêntrico acreditava que os menos prósperos pertenciam a raça ou povo geneticamente inferior. Enquanto esta última interpretação caiu em desgraça com a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial, a “luta de classes” segue, explícita ou implicitamente, orientando a nossa discussão comum. Este pensamento se baseia na teoria de estruturas de poder, que afirma serem todas inequidades e disparidades atribuíveis a forças discriminatórias inatas ao “sistema”. Esta ideia se origina no princípio da mais-valia de Karl Marx: o lucro é inerentemente extorsão. O ganho de alguém é necessariamente a perda de outro.
O debate público, infestado de resíduos marxistas, percebe a desigualdade como um problema em si mesmo, sem distinguir sua natureza ou qualidade, sempre partindo-se do pressuposto que a riqueza gerada ou acumulada por alguém é fruto de fraude ou pilhagem. Culpam a pobreza de muitos pelos haveres de alguns, e clamores por “redistribuição” são a ordem do dia em discursos políticos e eleitorais.
Os massacres no século passado foram decorrência natural deste pensamento quando levado às últimas consequências. Enquanto a Ucrânia ocupa os noticiários hoje pela invasão russa, noventa anos atrás ela foi vítima de fome concebida por esta mesma ideologia. Este país era chamado de “celeiro do oriente europeu”, pois ali se encontra o mais fértil solo da região. Contudo, as terras aráveis não eram “distribuídas igualitariamente” entre todos os fazendeiros, já que alguns possuíam propriedade maior do que a de seus vizinhos, e aqueles que por esforço próprio ascenderam além de seus pares foram vilanizados pelos comunistas, que os rotulou como inimigos da classe proletária (kulaks – camponês próspero). Por terem cometido o “crime” de enriquecer ligeiramente, já que alguns ostentavam duas cabeças de gado ao invés de nenhuma, eles foram executados pelo regime stalinista, que confiscou suas chacrinhas. Como a sede por sangue nunca é saciada, os próximos a serem exterminados foram os “semikulaks”, aqueles coitados que, mesmo pobres, agora ocupavam o topo daquela pirâmide.
Stálin não antecipou o que é óbvio a qualquer indivíduo com o mínimo de bom senso. Os kulaks, apesar de não serem numerosos, eram responsáveis pela quase totalidade da comida produzida na Ucrânia. Matá-los gerou uma fome hoje conhecida como Holodomor, que vitimou mais de 8 milhões de ucranianos e repercute até hoje, pois quem descende dos sobreviventes da catástrofe cresceu ouvindo histórias sobre canibalismo e sobre mães que mataram seus próprios filhos para privá-los de morrer por inanição. O Holodomor não foi episódio isolado. Fomes geradas por projetos de “reforma agrária” assolaram inúmeros países no século XX, incluindo Afeganistão, Índia, Bangladesh, Etiópia, Zimbábue, China, Vietnã, Birmânia, Camboja, Laos e outros. Apesar de ninguém dizer defender “deskulakização” hoje em dia, o mundo segue repleto de imbecis que pregam as promessas utópicas que pariram essas tragédias.
Este pensamento, promulgado por tipos que nunca carpiram um lote e faliriam até um carrinho de picolé, não distingue hierarquias opressivas de hierarquias de competência. Sua falta de senso de realidade leva-os a crer que é impossível alguém erguer-se de um estado prévio de carência baseado nas próprias aptidões. Falham em perceber que organizações humanas voluntárias são suficientemente complexas de modo que opressão é um meio insuficiente de estabelecer uma hierarquia estável. O antropólogo anarquista americano David Graeber, em seu póstumo título “The Dawn of Everything: A New History of Humanity” (O Começo de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, em tradução livre) condensa longa cadeia de evidências sustentando algo que para a pessoa comum, não ideologizada, é evidente: ao longo da trajetória humana aqueles que ascendem por tirania e violência produzem impérios de vida curta e morrem tão violentamente quanto viveram. Hierarquias sociais prósperas, contudo, baseiam-se em interações positivas recíprocas que se reproduzem ao longo do tempo e esta dinâmica se manifesta até mesmo em tropas de chimpanzés, como aponta o primatologista holandês Frans de Waal. O símio alfa de um bando saudável sacrifica sua caça em favor do grupo, trata as fêmeas bem (para seus padrões) e devota uma quantidade de tempo razoável cuidando dos filhotes.
Há uma ética subjacente à liderança justa que não é mera consequência do exercício arbitrário de poder cru, e esta ideia de que dominância por si própria é a base de arranjos hierárquicos não passa de projeção marxista. Ao mesmo tempo, os “redistribuidores” somente miram suas armas verborrágicas nos setores produtivos da sociedade, nunca nas alçadas políticas. É como dizia Tom Jobim: no Brasil sucesso é ofensa pessoal. O vilão é a figura do “grande empresário”, e não o burocrata, mesmo que o PIB per capita do Distrito Federal seja o dobro de São Paulo e o triplo de Goiás.
Os programas governamentais de “tirar dos ricos e dar aos pobres” sempre funcionam na primeira parte e nunca na segunda, como dizia Milton Friedman. Se esta ideologia provocou a morte de 200 milhões de pessoas nos últimos cem anos, talvez deva ser abandonada. Prefiro avaliar as intenções de um discurso pelo resultado que ele produz, e não pelo floreio retórico que mascara inveja ao tentar se passar por compaixão. Os genocídios são prova irrefutável disso.
Cuba e Venezuela seguem exemplos vivos da miséria produzida por este pensamento e no Brasil ele é presente em versões enfeitadas e fofinhas. Não entreguemos o poder nesta eleição a quem ataca a ideia de competência em si. Não desçamos ao nível da fala de Satanás no poema “Paraíso Perdido” de John Milton: “é melhor reinar no inferno do que servir no céu”. Talvez eu esteja equivocado e sejam anjinhos. Só não consigo enxergar a auréola sob a pilha de cadáveres.