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Eliézer Cardoso de Oliveira

Qual o sentido de pertencer a uma instituição cultural como o IHGG?

| 03.08.22 - 16:41
 
Se eu tivesse sido convidado para participar de uma associação filantrópica qualquer, provavelmente o meu discurso seria apenas para agradecer e enaltecer a instituição. Contudo, não é o caso do IHGG que congrega intelectuais e, todos sabem, uma das principais características de um intelectual é a sua capacidade de fazer uma reflexão crítica sobre o mundo a sua volta e sobre si mesmo.
 
Por isso, eu quero aproveitar esse momento ritualístico para responder a seguinte pergunta: qual o significado social de participar de uma instituição tradicional como essa no ano de 2022?
 
Para fazer essa oportuna reflexão sobre a atualidade ou não dos Institutos Históricos e Geográficos, eu vou pedir a ajuda de um sociólogo francês, um dos maiores intelectuais do século XX, Pierre Bourdieu.
 
Fazendo uma síntese entre Marx, Weber e Durkheim, Bourdieu mostrou que a sociedade é constituída por “campos sociais”. Campo social é um espaço em que as pessoas competem entre si por bens simbólicos. Essa é uma grande sacada de Bourdieu: os seres humanos, diferentemente dos outros animais, precisam de símbolos para dar sentido à sua vida. Só sexo, comida e abrigo não bastam para nós. Por isso há o campo da Religião, onde as pessoas disputam posições na hierarquia do sagrado. Há o campo da política, onde se disputa o poder, desde o poder de um simples vereador de uma pequena cidade até o poder imenso de um presidente da República. Há o campo da Estética, em que as modelos e os modelos disputam entre si, quem tem o maior capital estético. Há o campo da economia, o mais importante na nossa sociedade atual, em que acumular riquezas é o objetivo último dos participantes. E há o campo da cultura, em que as pessoas se mobilizam para participar das diversas instituições culturais: Academia Brasileira de Letras, União Brasileira dos Escritores, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
 
Cada um desses campos tem a sua própria moeda ou, na linguagem de Bourdieu, o seu próprio capital simbólico. O capital simbólico da religião é muito diferente do capital simbólico da estética: ninguém foi escolhido papa por ter um rosto bonito e, por outro lado, ter uma fé abnegada não é relevante para uma moça ganhar o título de miss universo. Para entrar aqui no IHGG, pelo menos segundo os critérios estabelecidos no Edital de Seleção, cuidadosamente avaliados pelo Nilson Jaime, pelo Abílio Wolney e pelo Pedro Nolasco, não se levou em conta a classe social, a fé religiosa ou a aparência estética dos candidatos ou candidatas. O capital simbólico valorizado aqui é a experiência e a atuação nos aspectos históricos ou geográficos da cultura goiana.
 
Há uma característica dos capitais simbólicos que resulta em profundas consequências sociais: os capitais simbólicos são raros, o que acarreta numa competição pela sua posse. Existem muitos cientistas no mundo, mas apenas alguns poucos conseguem ganhar um prêmio Nobel. Existem muitos praticantes de natação, mas apenas uns poucos conseguem ganhar medalhas olímpicas. Existem muitos intelectuais em Goiás, mas nem todos fazem parte do IHGG.
 
A sociologia de Bourdieu nos mostra que o mundo é desigual, não apenas em termos de classes sociais, mas também em termos de capitais simbólicos. Em cada campo social vai haver os dominantes – aqueles que têm muito capital simbólico – e os dominados – aqueles que têm pouco capital simbólico.
 
E a distinção hierárquica entre dominantes e dominados é feita por meio de troféus e rituais de consagração. Entre os militares, basta comparar o uniforme de um general com o de um soldado, para se descobrir quem domina quem. Nas artes marciais, como a nossa brasileiríssima capoeira, o dominante usa um cordão branco na cintura enquanto os dominados usam cordões coloridos. No mundo intelectual, seja no mundo acadêmico, as diferenças são mais sutis, pois elas não se expressam visualmente, mas principalmente por meio de designações de tratamento: mestre, doutor, pós-doutor, nas universidades; sócios-titulares, sócios-eméritos, sócios beneméritos e sócios correspondentes, nos institutos históricos.
 
Cada campo social tem suas próprias regras – o hábitus – como diria Bourdieu. O hábitus é uma forma específica de se comportar dentro de um campo. Entrar sem camisa num Tribunal é uma grave infração das regras do campo jurídico, mas é um habitus comum para um concurso de beleza masculino. Chamar alguém de cavalo é um elogio numa academia de musculação, mas é uma indelicadeza numa Academia de Letras.
 
Um campo social é formado pelo comportamento das pessoas que agem orientadas por normas, regras ou costumes. Um campo social só existe quando os integrantes, ou seja, os dominantes e os dominados aceitam as suas normas. Quando as pessoas não aceitam mais os habitus de um determinado campo, ele simplesmente desaparece. É o que está acontecendo com o campo social dos entusiasmados por brigas de galo, que, felizmente, em minha opinião, está em vias de desaparecer por falta de jogadores. Isso pode acontecer com qualquer coisa humana: se nós não acreditarmos mais no IHGG, ele pode desaparecer um dia.
 
Os campos sociais são microcosmos autônomos com regras próprias, mas eles não estão isolados da sociedade em geral. Os campos sociais têm uma autonomia relativa, lidando de modo particular com as forças sociais externas. Por exemplo, o racismo contra os negros infelizmente existe em nossa sociedade, mas cada campo social vai absorver o racismo de forma diferenciada. Ele vai ser muito maior entre os médicos do que entre os lutadores de boxe. O capital-dinheiro é uma força social poderosa no mundo capitalista e, quase tudo que pretendemos fazer, requer um gasto financeiro. Mas há campos sociais em que o dinheiro é mais decisivo do que em outros. É preciso muito mais dinheiro para se tornar um Airton Senna do que para se tornar um Machado de Assis.
 
Por outro lado, é possível converter o capital simbólico em capital dinheiro. Aqui eu quero citar um louvável exemplo desta instituição. A gestão do atual presidente, Jales Mendonça conseguiu converter o capital cultural do IHGG em capital dinheiro, agaranhando recursos para uma urgente reforma do prédio que corria risco de desabar e financiamento para projetos importantes, como a digitalização de documentos para a hemeroteca. Foi uma façanha admirável, já que a sociedade em geral não reconhece a importância histórica e cultural desta casa. Não sei como o Presidente conseguiu convencer os empresários – geralmente pessoas muito pragmáticas com dinheiro – a trocarem vultosas quantias financeiras por um reconhecimento social de mecenas desta casa.
 
Não é fácil fazer essas conversões de capitais, porque existe uma espécie de estranhamento entre os campos. Troféus e rituais de consagração que são muito valiosos em um campo possuem um reconhecimento muito baixo em outro. Saber dançar bem é um capital simbólico muito importante para jovens baladeiros, mas essa habilidade vai ser irrelevante para alguém que quer conquistar um emprego num banco.
 
Quando eu disse, todo empolgado, para a minha filha, uma adolescente de 13 anos, que eu havia sido aceito para fazer parte do IHGG, a primeira coisa que ela me perguntou é quanto eu iria ganhar! Eu, meio decepcionado, disse que o objetivo da instituição não era financeiro, mas eu não tive coragem de dizer a ela que, em vez de ganhar algum dividendo financeiro, eu teria que pagar uma anuidade para participar.
 
Eu uso esse exemplo para voltar a pergunta que guiou esta reflexão, uma pergunta muito parecida da formulada por Max Weber no seu famoso texto “A ciência como vocação”: qual o sentido social de fazer parte de uma instituição como esta, na qual nenhum de nós vai ter qualquer tipo de recompensa financeira e o reconhecimento social é relativamente limitado? O que levou os fundadores a se mobilizarem para construírem este prédio, tendo que, vencer, muitas vezes, o constrangimento pessoal, para pedir o apoio de políticos? O que levou os diferentes gestores que passaram por esta casa a doarem o seu precioso tempo, sem qualquer recompensa pecuniária, para manter este instituto funcionando?
 
A resposta é justamente a necessidade humana, muito bem desenhada por Bourdieu, de participar de um campo social, no qual encontramos um sentido existencial em fazer aquilo que gostamos. A maior angústia de um intelectual é a solidão dialógica, ou seja, não ter interlocutores para conversar sobre temas que lhe interessam, já que, dificilmente, nossos amigos e nossos familiares estarão dispostos a nos ouvir, quando falamos sobre as “As irmandades de pardos e negros em Goiás do século XIX” ou sobre “o mudancismo condicionado na transferência da capital para Goiânia”. Aqui no Instituto temos pessoas para conversar, documentos para pesquisar, livros para consultar, espaço para conviver. Aqui um estudioso da cultura e geografia de Goiás se sente tão em casa quanto um boxeador num tablado de um ringue. E tem mais. Como qualquer outro ser humano, um intelectual precisa se sentir reconhecido pelos pares. O próprio Bourdieu é um exemplo. O homem que dissecou os rituais de prestígio e consagração do mundo acadêmico, não hesitou em fazer parte do College de France e aceitou com orgulho os prêmios e medalhas de consagração que lhes foram oferecidos.
 
Para mim, fazer parte desta casa constitui uma conquista importante. Principalmente porque a minha biografia tem um aspecto similar à de Capistrano de Abreu, já que ambos somos de origem social modesta e experimentamos a enxada e a caneta e descobrimos que a caneta é um instrumento de trabalho muito mais confortável do que a enxada.
 
Quis o destino que o patrono da minha cadeira fosse o médico, militar, deputado, advogado, professor e historiador Americano do Brasil que, além disso tudo, fazia muito sucesso com as mulheres. Não tenho predicados suficientes para estar à altura de uma personalidade tão versátil e ilustre, mas, ao menos, no que tange ao estudo da História de Goiás, espero fazer jus ao seu legado, contribuindo para aumentar o capital cultural deste Instituto.
 
 
*Eliézer Cardoso de Oliveira, professor do Curso de História e do Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás, campus de Anápolis, é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com estágio pós-doutoral no Programa de Ciências da Religião da PUC-Goiás.
 

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