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Jales Naves Júnior

A Réplica de Licurgo

| 11.08.22 - 08:18
Licurgo foi um governante grego conhecido por outorgar a “Grande Retra”, uma série de reformas legais e administrativas que tornariam Esparta a potência militar que foi. Sua própria existência é contestada, já que alguns cronistas da Grécia antiga registram que certas histórias contadas sobre ele coincidem com outras que dizem respeito ao Deus Apolo. Não obstante, Plutarco traz anedota interessante que bem ilustra o famoso pragmatismo espartano. Certa vez Licurgo caminhava pelas ruas quando observou um amontoado de pessoas que se juntava ao redor de um homem que vociferava em cima de um caixote. O legislador se aproximou para ouvir o discurso do cidadão, conhecido seu, que bradava contra a austeridade da Cidade-Estado, afirmando que a cultura belicosa que ali se desenvolvia formaria habitantes combativos demais para uma boa convivência em sociedade. Licurgo tomou a palavra e apontou ao público que este homem tratava seus filhos, esposa e servos com brutalidade, sendo intolerante com as mais minúsculas de suas falhas. Proferiu então sua famosa réplica: “se aspira mudança, comece dentro de sua própria casa”. A multidão logo se dissipou.

Apontar a hipocrisia do discursista foi suficiente para desinteressar seus ouvintes, porque todos nós sabemos intuitivamente que qualquer pregação que seja contradita pelas ações do pregador é mera retórica vazia. Se a sua vida privada conflita com suas opiniões intelectuais, isto invalida suas ideias, e não sua vida.

O recente surgimento das redes sociais fez ascender curioso fenômeno. Em inglês chamam-no de “virtue signaling” (sinalização de virtude), enquanto por aqui o nomeamos de “cultura da lacração”, que consiste em exibições públicas de suposta retidão moral para parecer bem aos olhos de terceiros. A lacração se dá através de textos genéricos no Facebook repletos de lugares comuns ou por meio de frases de efeito no Instagram ou Twitter. Narcisista, o lacrador espera ser credenciado como virtuoso mesmo na ausência do trabalho necessário para realmente sê-lo, sempre saindo da empreita com a consciência do dever cumprido e dormindo o sono dos justos à noite.

Não é assim que o lacrador deseja ser percebido, contudo. O que ele gostaria que acontecesse é que o mundo notasse a óbvia justeza de seus padrões morais e suas demandas. Embora a seleção de pautas possa parecer aleatória a olhos destreinados, ela atende a critérios bem específicos: o lacrador sempre apoia causas que lhe conferem prestígio pessoal. Ela também não deve incorrer em absolutamente nenhum custo ao lacrador sob pena de ser abandonada e não pode necessitar manifestação maior do que uma simples postagem. Ao acumular estas publicações nas redes, o lacrador imagina estar condensando um portfólio de bondades que o autoriza a cometer excessos, como insultar e requerer a censura de seus oponentes. E se o foco do lacrador é mera aparência, ele prefere o que soa bem ao que funciona quando toma suas decisões políticas, não importando a devastação que elas tragam posteriormente.

Mas o lacrador não percebe que a verdadeira virtude é silenciosa porque reside em ações, e não retórica. Ela está naquilo que não se anuncia e o que se faz quando ninguém está olhando, pois quem grita é o vício. A real virtude impõe um custo ao virtuoso, que deve estar disposto a experimentar um sacrifício pessoal por ela. O bem é um fim em si mesmo e não está sujeito a ego ou mesquinho projeto político do “benfeitor”.

Todo sistema ético desenvolvido ao longo da história alerta que a exagerada comunicação de altruísmo termina poluindo aquilo que se faz com vaidade. E essa contaminação termina por condicionar a feitura destes atos ao reconhecimento e aplauso de terceiros, eventualmente levando ao abandono de qualquer prática caridosa. O filósofo chinês Mêncio, discípulo de Confúcio, adverte que há sedutor erotismo na sinalização da virtude, pois cria-se uma pomposa ficção de auto grandeza que tenta camuflar um desejo de domínio sobre os outros. Para ele e Aristóteles, a ética das virtudes é longo e árduo caminho, consistindo no autodesenvolvimento por meio do cultivo mudo de bons hábitos. “Quando o Céu vai conferir grande nobreza a um homem, ele exercitará sua mente com sofrimento, sujeitará suas juntas e ossos a trabalho duro, colocará obstáculos contra suas boas ações para estimular sua mente, endurecer sua natureza e melhorá-lo onde é incompetente” (Mêncio, China, 3º século A.C – tradução minha).

Citar o extremo-oriente ilustra que esta é uma percepção universal e atemporal. Mas a nossa própria tradição ocidental, no judaísmo e cristianismo, prega os mesmos valores. Mateus 6 1-4: "Tenham o cuidado de não praticar suas 'obras de justiça' diante dos outros para serem vistos por eles. Se fizerem isso, vocês não terão nenhuma recompensa do Pai celestial. Portanto, quando você der esmola, não anuncie isso com trombetas, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem honrados pelos outros. Eu garanto que eles já receberam sua plena recompensa. Mas, quando você der esmola, que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a direita, de forma que você preste a sua ajuda em segredo. E seu Pai, que vê o que é feito em segredo, o recompensará”.

A sinalização de virtude é uma abdicação de responsabilidade, já que terceiriza e externaliza os problemas da humanidade. O mal está sempre em outro lugar, nunca dentro do lacrador, e ele cria construtos abstratos e semanticamente vazios como “capitalismo” e “neoliberalismo” para colocar a culpa. Para quem tem pretensões grandiosas e globais, o sofrimento próximo a você é banal perto da utopia que você delira conseguir criar. Daí a máxima marxista de que ajudar um pobre individualmente é uma forma de alienação burguesa, um sentimentalismo barato, e o foco precisa estar na revolução vindoura ou em um “programa de governo”. E se você identificar a malevolência em outro lugar que não dentro de si, você se julga justificado a tomar medidas corretivas contra o que percebe ser a real fonte do mal. Assim o tresvariado lacrador acredita que insultar e degradar a imagem de seu oponente o posiciona como árbitro moral, atuando como juiz, júri e algoz. Por isso os idiotas úteis “antifascistas” se aproximam muito mais do fascismo do que quem eles acusam como tal.

Sócrates preferiu engolir cicuta à hipocrisia e os primeiros santos converteram massas ao cristianismo ao morrerem de fome por se negarem a comer carne de animais ritualisticamente sacrificados. Como disse Marco Túlio Cícero: poucos são os que desejam ser dotados de virtude ao invés de somente cultivar as aparências.

*Jales Naves Júnior é advogado.

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