Inaugura-se nesta semana a Trajetória Centenária de Waldomiro Bariani Ortencio, com a Sessão Festiva da Academia Goiana de Letras (AGL).
É demais comum a criação de mitos. Muitos de barro, de espuma, de papel, e que, com o tempo, quebram-se, dissolvem-se ou estilhaçam-se ao vento. São personagens de faz de conta, que se configuram como simbólicas, ganham espaço e permanecem, por curto ou longo tempo, apenas, feito fantasmas ou lembranças controvertidas e sombreadas.
Há, também, a lenda, título popular para figuras vistas como notáveis, que migraram para a Instância Maior, mas deixaram rastos de sua magnitude, fictícia ou real, nas vertentes artísticas, religiosas, filantrópicas, políticas. Em torno delas, não raro, o fantasioso aglutina-se ao real e subjuga-o. Uma conjunção, portanto, da realidade com o ficcional, que gesta alguns mitos impostos e lendas improváveis, mas também, legítimos mitos e respeitáveis lendas. É de um desses mitos, e, ao mesmo tempo, de uma dessas lendas, no caso, viva, que quero falar: Waldomiro Bariani Ortencio.
E é a lenda de carne, osso, cérebro, emoções, talento, luz interior, visão amplificada, que produz, dedica-se, desafia os próprios desafios, enfrenta as dificuldades, contribui e destaca-se em causas nobres, seja na literatura e na música, seja no folclore e noutras vertentes populares? Personagem que ganha luz durante uma trajetória e torna-se lenda viva, personalidade predestinada à imortalidade na História?
Esse mito de verdade, lenda viva, aos 99 anos, esbanja invejável lucidez e ainda participa de encontros culturais. Com mais de 50 obras publicadas, e muitas reeditadas, Bariani Ortencio, paulista de Igarapava, nasceu em 24 de julho de 1923, mas no registro, por um equívoco paterno, 24 de outubro, data de nascimento do próprio pai. Ainda na pré-adolescência, demonstrou seu dom para a literatura, com estreia no jornal estudantil, O Chicote, em Itaperava, SP, onde residiu por alguns anos.
A família resolveu mudar-se para Goiás. E pousou em Goiânia, capital que ainda cheirava a fraldas, ou melhor, a terra em rebuliço, em tempo de gestação. A viagem, a bordo de um caminhão, durou 8 dias. E Bariani, no fulgor da adolescência, aos 15 anos, entregava seu coração, definitivamente, à mãe Goiânia. Fato duplamente curioso: sua chegada coincidiu com uma partida de futebol – Atlético Goianiense versus Anápolis – à qual enfronhou-se todo para assistir. Mas... cadê o goleiro do Atlético?! O menino Bariani, no auge da ousadia, não se fez de suplicado e, logo, prontificou-se a substituí-lo. Ah! o juiz?! Nada menos que Venerando de Freitas Borges, prefeito da capital. O resultado do jogo foi positivo, com a vitória atleticana, 1x0, como lembrou seu primo Horieste Gomes. Bariani fez bonito, tornou-se goleiro titular do Dragão rubro-negro, time também do saudoso José Mendonça e dos acadêmicos da AGL, Eurico Barbosa, Gilberto Mendonça Teles, Itami Campos e Nasr Chaul.
Aluno do Liceu, Bariani escrevia textos para o jornal escolar. E não parou mais, ao contrário, assinou crônicas para a Rádio Clube de Goiânia, não raro, publicadas na Folha de Goyaz, jornal que também acolheu meus textos juvenis, por mais de ano.
Bariani chegou a iniciar o Curso de Odontologia, porém, não o concluiu.
Foi um pouco de tudo, como bem diz: “Fui alfaiate, jogador de futebol, professor de Matemática, comerciante, industrial, minerador, fazendeiro, escritor, folclorista, cozinheiro, pescador, nas horas vagas, e compositor.” Parênteses: compôs várias músicas, muitas delas gravadas por intérpretes reconhecidos. Em 1960, ao ensejo da inauguração da nova capital do Brasil, a Orquestra e Coro RGE gravou a marcha Brasília vinte e um anos, de sua autoria, e, no mesmo disco, Brasília a Capital da Esperança, em parceria com Henrique Simonetti e Capitão Furtado. Fecho os parênteses. Sem dúvida, um Bariani multifuncional, inegavelmente, bombrilesco. Volto minha atenção para o cozinheiro que, em parceria com o saudoso escritor Aldair Aires, nos idos de 1978, inventou o Peixe na Telha, prato que fez o maior sucesso, inclusive, internacionalmente, e é bastante apreciado pelos goianos e visitantes.
Pois é, Bariani Ortencio (que detesta ver seu nome escrito com um ‘e’ no final, em vez de ‘i’, e Ortencio com acento), lenda viva da literatura de Goiás, foi agraciado com os mais importantes prêmios do Estado e outros tantos, nacionais. Integra a Academia Goiana de Letras, Academia Goianiense, União Brasileira de Escritores e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, de muitas dessas, Tesoureiro vitalício. Ainda atuante e palpiteiro, embora quase centenário, continua com as portas abertas do seu lendário sobrado, na Rua 82, para encontros de escritores, de demais artistas, realização de colóquios literários, lançamentos de livros (Maria Helena Chein, Iêda Schmaltz, Aidenor Aires, Ubirajara Galli e tantos outros; também foi palco e cenário da primeira peça teatral de Miguel Jorge, Os angélicos). A visitação à sua biblioteca, aberta ao público, surpreende e encanta pelas várias raridades lá expostas, assim como as paredes iconográficas e memoriais, hospedeiras de relíquias preciosas, não só fotográficas, também jornalísticas.
Bariani, genuíno mito da cultura goiana, em plena produtividade (ah! esse mito do bem ama e defende demais da conta a cultura!!!). Bariani da Campininha, do Atlético Clube Goianiense, do emblemático Bazar Paulistinha, ponto de encontro das boas prosas, dos escritores, dos amantes da música, rodada em vinil – Long Play, ou LP, Compacto –, depois, em fita cassete, CD, DVD... Bariani Ortencio, do programa Frutos da Terra, na TV Anhanguera, ao lado do idealizador e apresentador Hamilton Carneiro. Bariani folclorista premiado, aqui e acolá, cujo trabalho mereceu reconhecimento nacional, presidiu, por anos, a Comissão Goiana de Folclore (hoje, é Presidente de Honra) e sua sucessora, a dinâmica Izabel Signorelli, segue os caminhos do mestre, mas imprimindo sua marca de dedicação e ativismo. Após criada a Comissão Nacional de Folclore, foi editada a Carta Brasileira do Folclore, que determinou, aos estados, a constituição de comissões em seus municípios. Goiás, o pioneiro: de pronto, 40 municípios formaram suas comissões. E, por falar em folclore, agosto é o mês do folclore e as comemorações acontecem aqui e interior afora sob o timbre da Comissão Goiana de Folclore.
Em fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia, vivenciei um dos momentos mais bonitos, importantes e emocionantes de minha trajetória literária, na Casa de Cultura e Educação, sede do Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortencio/ICEBO, hoje dirigido por seu genro e companheiro de cozinha, Beto Selva, promovido pelo mestre, amigo e confrade Bariani Ortencio. Havia cumprido meu 2º mandato na presidência da AGL, em outubro de 2019, e passado o leme ao atuante amigo e parceiro José Ubirajara Galli, timoneiro, já em segundo mandato, quando fui surpreendida pela homenagem, diga-se, inesquecível, com direito a Diploma de Mérito e deliciosa peixada. Sabia a dimensão daquele gesto bariânico, pois seu autor, de integridade à prova de qualquer tipo de bajulação e desonestidade intelectual, sempre deixou à mostra sua espontaneidade e honestidade de propósitos. Portanto, a maior honraria que já recebi, e que, hoje, coloco ao lado do Ano Cultural Acadêmico, que ostenta meu nome, outro momento de inexprimível alegria e orgulho.
Waldomiro Bariani Ortencio, ou, simplesmente, Bariani, doou mais de 70 anos à cultura de Goiás. Seu ativismo, em todos os quadrantes culturais, construiu sua própria história e enriqueceu a história do estado de Goiás. Portanto, mais do que todos, merece, em vida, como sempre disse querer, o reconhecimento, em forma de homenagens.
Deus o abençoe, Mito da Literatura e Lenda viva da Cultura goiana! E o obrigada uníssono de sua confraria da AGL.
*Lêda Selma de Alencar é poetisa, contista e cronista, presidiu a Academia Goiana de Letras em dois mandatos, consecutivos (2015-2019)