Em meados do século 20, o teórico russo da linguagem, Mikhail Bakthin, apresentou o seu conceito de dialogismo em obras que se tornaram clássicas, como “Problemas da Poética de Dostoiévski”. Nesse trabalho seminal, Bakthin defende a ideia de que o genial romancista, Fiodor Dostoiévski, teria inaugurado a polifonia no gênero romanesco.
Ou seja, nesse escritor clássico é onde se percebe nitidamente, conforme Bakthin, a presença pela vez primeira no gênero romanesco de muitas vozes distoantes da do próprio autor, que funcionaria como maestro a estabelecer a harmonia do conjunto, conduzindo a um resultado magnífico, o romance polifônico. Há quem discorde da primazia do romancista russo nessa questão. É o caso do crítico norte-americano, Harold Bloom, para quem o conceito seria um tanto ou quanto inconsistente.
A despeito das considerações bloomianas sobre a sua gênese, o conceito se estabeleceu, ganhando cidadania nos estudos literários. A conceituação bakthiniana, todavia, foi ampliada nas décadas subsequentes, enfeixando-se à noção mais ampla de intertextualidade proposta por Julia Kristeva nos anos 60 do século passado, fato que deixou bastante irritado um dos principais tradutores de importantes obras russas ao português, Paulo Bezerra, para quem Kristeva teria ficado com méritos conceituais que pertenceriam exclusivamente a Mikhail Bakthin.
Seja como for, o fato é que a ideia de intertexto ganhou relevância epistêmica, ou seja, alusiva à teoria do conhecimento, esgarçando-se em múltiplas abordagens que foram cartografadas pela pesquisadora francesa, Tiphaine Samoyault, em seu trabalho intitulado “Intertextualidade”, que apresenta nesse tratado as diversas facetas em torno do tema. Em sua introdução, escreve ela sobre as diversas metáforas literárias que remetem ao intertexto:
“O termo intertextualidade foi tão utilizado, definido, carregado de sentidos diferentes que se tornou uma noção ambígua do discurso literário; com frequência, atualmente, dá-se preferência a esses termos metafóricos, que assinalam de uma maneira menos técnica a presença de um texto em outro texto: tessitura, biblioteca, entreleçamento, incorporação ou simplesmente diálogo”.
Do conjunto de palavras metaforicamente alusivas ao intertexto, referidas por Samoyault, duas chamam a atenção por conta de proximidades semânticas e de imaginário com o campo de conhecimento do espiritismo sistematizado por Allan Kardec na segunda metade do século 19. São elas: “entrelaçamento” e "incorporação".
Imagiário e Intertexto
O pesquisador francês, Gilbert Durand, define o imaginário como sendo “o conjunto de imagens e relações de imagens que compõem o capital pensado do homo sapiens”. Cada ideia, portanto, que se estruturou no vasto oceano da cultura humana possui o seu imaginário, ou o conjunto de imagens que lhe dizem respeito mais diretamente, podendo muitas vezes, no entanto, dialogar com as imagens de outros conjuntos de imaginário.
A palavra “entrelaçamento”, na conjuntura de imagens da física, remete a uma fala einsteiniana. Conforme os manuais de física para leigos, o entrelaçamento quântico se caracteriza como uma inusitada relação entre partículas subatômicas que funcionam como em um espelhamento recíproco, mesmo que estejam separadas por distâncias inimagináveis no espaço. Grosso modo, seriam partículas que se poderia chamar poeticamente de almas gêmeas subatômicas, pois todos os movimentos que uma desempenha se reflete na outra, o que levou Einstein a defini-las como “partículas fantasmagóricas”, o que dialoga com a biblioteca espírita da metáfora mencionada por Samoyault.
Por sua vez, a “incorporação” é um termo que reitera a definição durandiana de imaginário no contexto da sociolinguística. Um olhar sobre dois dicionários on-line confirma esta proposição. No verbete do Priberam, de origem lusitana, não consta a definição trazida pelo dicionário Michaelis em sua oitava apreciação sêmica do vocábulo “incorporação”: “8 ESPIR Ato ou efeito de o corpo de um médium ser tomado por um guia ou espírito; corporificação”.
No âmbito dessas considerações, a já extensa literatura produzida pela doutrina elaborada por Allan Kardec traz um diálogo constante de imaginários remissivos à metáfora de biblioteca. Exemplo disso é a obra “Amanhecer de Uma Nova Era”, psicografada pelo médium brasileiro Divaldo Pereira Franco. Este trabalho, publicado em 2012, constitui-se como um desdobramento de outra obra também recebida mediunicamente por Franco, intitulada “Transição Planetária”.
No conjunto de imagens que dão forma cultural ao espiritismo, ambas as obras trazem a narrativa em torno de um grupo de espíritos que trabalha pelo progresso humano e que busca neutralizar a atuação de outro conjunto espiritual que tem como objetivo a degradação dos indivíduos. Para tanto, uma das metas dos malfeitores do além é apagar a figura de Jesus Cristo da história humana.
O ranço de um dos líderes do sinistro projeto em relação ao cristianismo remonta ao período da inquisição católica, quando na condição de judeu foi perseguido e levado à morte pela sanha do fanatismo religioso do período. Conforme a narrativa de “Amanhecer de Uma Nova Era”, a fim de que ele recuperasse a lucidez diante da vida: “Ser-lhe-á demonstrado que a perseguição e morte infames de que foi vítima têm suas raízes nos longínquos dias em que, ao lado de Elias, às margens do córrego Quisom, passou a fio de espada os adoradores de Baal, com ímpar crueldade e raiva...”.
Sob a perspectiva do imaginário espírita, os espíritos são imortais, realizando a evolução espiritual através da migração corporal conhecida como reencarnação. A temática não é estranha ao cristianismo em si, pois em sua obra “Peri Archon” (traduzida como “Tratado Sobre Os Princípios”), o teólogo Orígenes, que viveu entre os anos de 185 e 253 D.C., considerava essa possibilidade em sua doutrina da apocatástase, que foi posteriormente rejeitada por um dos concílios de Constantinopla.
Na biblioteca da relação entre textos, o entrecho da obra psicografada por Divaldo Franco remete ao dramático acontecimento bíblico envolvendo o profeta Elias e os sacerdotes de Baal, cuja narrativa consta do capítulo 18 do I Livro de Reis, sob a perspectiva do rico imaginário espírita. Sem dúvida, uma instigante relação intertextual que traz para os dias atuais elementos de uma textualidade muito antiga do repertório bíblico, evidenciando a extensa maleabilidade do conceito de intertexto, a biblioteca metafórica que enforma a infinita rede das relações culturais humanas.
Gismair Martins Teixeira - Pós-Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras e Linguística pela UFG-GO; professor e pesquisador.
Myriam Martins Lima - Bacharel em Biblioteconomia pela UFG e Mestranda em Comunicação pela Faculdade de Informação e Comunicação da UFG.