No segundo e terceiro século da cristandade, entre os anos de 185 e 253, viveu em Alexandria, no Egito, uma personagem notável pelo seu gênio espiritual. Dotado de inteligência incomum, Orígenes de Alexandria escreveu seu nome na história do cristianismo e da humanidade com um impressionante talento para a exegese bíblica, constituindo-se no principal teólogo da patrística a lançar as bases da interpretação da textualidade sagrada do que viria a ser a Bíblia cristã, que se compõe do material alusivo ao judaísmo, o Velho Testamento (Torá), e do Novo Testamento, formado pelos evangelhos, as cartas apostólicas e o relato da atuação dos continuadores de Jesus Cristo.
Da extensa produção de Orígenes, cuja maioria se perdeu nos labirintos do tempo e do espaço, chegaram aos nossos dias obras como o “Peri Archon” (traduzido como “Tratado Sobre Os Princípios”), e “Contra Celso”. Nestes livros tem o leitor uma demonstração incisiva da verve interpretativa de Orígenes, que apresenta no primeiro a sua doutrina da apocatástase, que aproximava o pensamento cristão da cultura grega antiga, e no segundo a apologia do cristianismo diante dos ataques do filósofo grego Celso, que buscava através de seus escritos ridicularizar a doutrina cristã.
Em sua aguda percepção do problemaescriturístico, Orígenes advogava que o texto bíblico não deve ser lido levando-se em conta apenas o sentido literal. Outras camadas interpretativas deviam comparecer, com destaque para a percepção alegórica que a textualidade poderia assumir. O seu pensamento, neste particular, encontrava-se de acordo com o de eminentes rabinos judeus que lhe são anteriores, conforme noticia a escritora de história religiosa Karen Armstrong.
Em “A Crítica Literária”, Jerôme Roger ratifica que os doutores da Igreja legaram à escolástica medieval a tradição de uma leitura codificada em quatro níveis: literal, alegórica, moral e anagógica. Embaralhando as letras iniciais para efeitos de memória, como indica o semiólogo Umberto Eco em “Limites da Interpretação”, pode-se formar o anagrama “alma”. Assim, a partir dele se pode falar em alma da interpretação, numa retórica místico-poética em torno das escrituras sagradas e que teve em Orígenes o precursor mais recuado no tempo.
Mesmo que suas ideias em torno da apocatástase tenham sido postas de lado pela Igreja, pois se chocava com o dogma acerca do inferno e a eternidade das penas, o certo é que o gênio de Alexandria formou escola e as sementes lançadas por ele ainda frutificam com bastante vigor em nossos dias. É o caso da mais recente obra lançada em terras goianas, de autoria do professor e pesquisador Dr. Emídio Silva Falcão Brasileiro.
O Evangelho de João termina com estas palavras que a princípio soam como uma hipérbole: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém”. De Orígenes aos dias atuais, contudo, a quantidade de material produzido sobre o mestre galileu vai deslocando cada vez mais a fala joanina para o seu sentido literal.
Neste contexto, o lançamento da obra “O Tratado dos Evangelhos” se configura como mais um tijolo colocado no edifício multissecular da textualidade cristã. Com doutorado em Direito por importante universidade portuguesa, onde defendeu tese que relaciona a lei de ação e reação de Isaac Newton ao Direito, o autor de “O Tratado dos Evangelhos” é professor de matérias jurídicas em faculdades goianas, cultivando a hermenêutica bíblica de orientação kardequianacomo prazerosa atividade que pela episteme da interpretação se correlaciona com o seu campo de atividades profissionais.
“O Tratado dos Evangelhos” terá mais um evento de lançamento com palestra do autor no próximo dia 02 de abril, coincidentemente data de nascimento do renomado médium Chico Xavier, na Irradiação Espírita Cristã, tradicional casa espírita kardequiana de Goiás. O trabalho publicado é resultado de anos a fio de paciente pesquisa do autor e pode ser visto como um desdobramento natural de obra anteriormente publicada por ele em 2000 intitulada “O Livro dos Evangelhos”.
Nesta primeira produção, Emídio Brasileiro realizou um paciente trabalho de, por assim dizer, edição dos textos evangélicos com metódica disposição. Os estudantes dos livros que dão notícias de Jesus Cristo sabem que a estrutura dos evangelhos é dividida em sinóticasomada ao texto joanino. São assim denominados evangelhos sinóticos por manterem, os escritos de Mateus, Marcos e Lucas, um impressionante paralelismo narrativo, o que não ocorre com o material de João Evangelista. Com a perícia de um restaurador de preciosas obras de arte, o Dr. Emídio Falcão Brasileiro fundiu os quatro textos em um único, num processo de engenharia textual raro de ser visto, produzindo no leitor uma experiência de recepção bastante peculiar e instrutiva.
Por sua vez, “O Tratado dos Evangelhos” realiza um procedimento semelhante ao aspecto formal de “O Livro dos Evangelhos”, mas agora no plano do conteúdo e da hermenêutica. O autor procede a minuciosa análise exegética de todos os versículos constantes dos evangelhos, apresentando no material preparado ao longo de muitos anos, cujos recortes apareceram na grande imprensa oportunamente, a sua verve evangélica que denuncia ao leitor um acentuado amor ao texto bíblico e, sobretudo, ao seu motivador, o rabi da Galileia, Jesus Cristo.
Ambas as obras realizam com maestria e precisão o que Honoré de Balzac, genial autor do portento literário intitulado “A Comédia Humana”, que se compõe de quase cem títulos, diz através de um de seus personagens, quando assevera que as palavras vestem os pensamentos. No caso de ambas as obras do Dr. Emídio Brasileiro, que também possui pós-doutorado em Ciências da Religião por importante universidade brasileira, o que ressalta ao estudioso da religiosidade cristã é que o seu trabalho em torno dos evangelhos pode ser pensado como um notável esforço textual e exegético que descerra a leitor a alma da mensagem crística trazida por Jesus de Nazaré.
*Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; doutor em Letras pela UFG; professor e pesquisador.